Aldri Anunciação sempre foi da arte. E a liberdade dada pelos pais já na infância foi fundamental para que o ator, escritor, roteirista, apresentador do Conexão Bahia, da TV Bahia, e dramaturgo pudesse ser tudo aquilo que gostaria. Aos 6 anos, o autor de Namíbia, Não! surpreendeu a mãe, dona Zilda, ao pegar um microfone durante um espetáculo e conversar com a plateia como gente grande.
Ele não fazia noção do quanto aquela atitude era grandiosa, mas dona Zilda, sim. Junto com o marido e pai de Aldri, Alcindo Anunciação, os dois resolveram criar todos os três filhos com a liberdade necessária para eles crescerem com empoderamento de saberem não só quem são, mas do que enfrentariam na sociedade preconceituosa de um país que se quer branco.
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“Minha família é muito de respeitar o fluxo, elas não gostam de forçar as coisas, meu pai era um político, minha mãe era grande professora, e logo depois se tornou advogada […] os dois são muito de seguir o fluxo da natureza, o que comanda a nossa relação é o ciclo das coisas, o respeito”, conta ele em entrevista ao iBahia.
“Ela já previa, enquanto mãe, essa qualidade de um comunicador artístico. Ela via que o próprio Aldri tinha um olhar de gavião, eu escolhia meus próprios cursos, quando tinha uma atividade na escola e a professora perguntava quem queria participar, eu quem levantava a mão”.
Assim como Ivete Sangalo, o programa de Tia Arilma foi a primeira atração de TV em que Aldri participou. Com 7 anos, ele fez uma espécie de maquete e saiu do programa como o vencedor do concurso de melhor trabalho criativo.
“Eu peguei uma caixa de sabonete, e fiz dessa caixa uma TV. Tinha um bonequinho de Playmobil e eu coloquei uma cabeleira enorme no boneco e disse que era a Tia Arilma e disse pra minha mãe que gostaria de ir no programa mostrar pra ela. Fui e ganhei”.
Com 9 anos, o baiano ganhou um livro. A obra se chamava “Capitães de Areia”, de Jorge Amado. Ele leu todo o texto e se apaixonou pelos personagens. Na cabeça daquele pequeno Aldri, todos os personagens eram reais e viviam nos bairros de Salvador.
Por coincidência, Aldri e a família foram morar em um dos mais famosos bairros de Salvador, o Rio Vermelho. A casa deles ficava próximo da residência do próprio Jorge e após uma conversa com dona Zilda, o menino bateu na porta do autor de “Capitães de Areia” para perguntar onde viviam o Pedro Bala, Volta Seca e o restante do grupo.
“Eu decidi ir até lá e minha mãe prontamente disse: ‘você quer ir? Vá’. E eu fui, bati na porta, e depois de algumas tentativas encontrei o Jorge e disse pra ele que minha avó morava no Taboão [bairro da capital baiana], mas que eu nunca tinha visto os meninos [do livro] lá”.
Jorge ficou surpreso com a ação do garoto, mas também não contou para ele que tudo que estava escrito no livro era ficção. O autor, então, lhe entregou uma carta.
“Ele me disse que a carta deveria ser entregue à Nilda Spenser, ela era uma atriz da época, incrível. Ela era a Fernanda Montenegro de antigamente, e que era a atriz que trabalhava nos filmes baseados nas obras do baiano, fazia muito teatro, e eu levei essa carta, ela leu e contou que no bilhete tinha escrito: ‘encaminhe este garoto. Ele acha que tudo o que eu escrevi é verdade. Como a gente explica para ele? Só o teatro para resolver. Então, a Nilda começa a me levar ao teatro, aí eu fui descobrindo o que ficção e realidade. Hoje eu posso dizer que Nilda Spenser foi minha madrinha”.
Após discernir o que ficção e realidade, o Aldri escritor nasce e toma uma atitude ainda mais ousada: o garoto resolveu convidar o Jorge Amado para escrever um livro junto com ele.
“É muito engraçado, que eu gostei tanto do Capitães de Areia que eu falei para Jorge Amado: ‘Vamos escrever um livro juntos?’, e ele respondeu: ‘Não, Aldri. Cada um escreve o seu’. Inclusive, eu tenho um título aqui, que a escritora recusou e se você quiser ele é seu’. Eu ainda não escrevi uma história com o título que ele me deu, mas eu pretendo”.
Com 18 anos ele resolveu desbravar o mundo fora de Salvador. Ao ganhar um papel na segunda temporada da saudosa novela teen, ‘Malhação’ (1998), o ator teve de se mudar para o Rio de Janeiro e a partir daí ganhou papéis em “A Diarista”, “Brava Gente”, “A Lei e o Crime”. A atuação mais recente de Aldri nas telinhas foi em “Segundo Sol”.
“Em malhação eu tinha 18 anos e perguntei pros meus pais se poderia ir. Eles liberaram.
Morri no Rio, e achei tudo uma delícia. Eu gravava a novela, fazia faculdade, que ficava na Urca, e estudava, e tomava banho de praia, e namorava o RJ […] foram anos muito bonitos”.
Namíbia, não!
Inspirado na obra “O Cometa”, de W.E.B. Du Bois, a obra Namíbia, não! nasceu em 2008. Considerada uma peça de ficção futurística, o o texto aborda, dentro dos limites de uma situação dramática, um microuniverso distópico que simboliza um dos futuros possíveis para as contradições sociais contemporâneas.
Com uma mistura de gêneros discursivos, o enredo traz referências extraídas do nosso cotidiano social e acaba deslocando o pensamento do leitor para o estímulo de sensações ligadas às questões sociais do Brasil.
“Essa ideia de trabalhar o racismo no Brasil de forma distópica, menos discursiva, no sentido de dor, é trazer um pouco de humor, de loucura e absurdo, o racismo é um absurdo, você exigir que pessoas que contribuíram para a formação brasileira sejam excluídas dos espaços. Mas trazem esse povo para trabalhar. A história de Namíbia é meio isso: e se for todo mundo embora? Cria um pavor na branquitude racista porque precisamos deles para trabalhar para a gente. Existe motivo de as favelas estarem perto dos bairros de classe A, é tudo uma reprodução da casa grande e da senzala. Então a distopia de Namíbia, não! Vem um pouco de W.E.B. Du Bois. Leiam “O Cometa”, é muito interessante”.
Cometa Medida Provisória
Após desfrutar da obra, Lázaro Ramos despertou um gatilho de que aquele produto poderia não só ser adaptado ao teatro - como já estava sendo -, mas também para as telonas.
“O Lázaro olhou para mim e disse: vamos fazer um filme”, contou Aldri, que prontamente aceitou o convite embarcou na nave do amigo e conterrâneo.
Os dois, então, escalaram um elenco de peso para vivenciar todo o drama da obra. Nomes como Taís Araújo, Seu Jorge, Alfred Enoch, Adriana Esteves, Mariana Xavier e Renata Sorrah participaram do filme, que se tornou a segunda maior bilheteria brasileira deste ano, ficando somente atrás de “Tô Ryca, 2”. Só na segunda semana, o filme acumulou quase 300 mil expectadores.
Com uma premissa simples e ao mesmo tempo absurda, “Medida Provisória” causa múltiplas sensações em seus expectadores.
Em uma iniciativa de reparação pelo passado escravocrata, o governo brasileiro decreta uma medida provisória e provoca uma reação imediata no Congresso Nacional. Os parlamentares aprovam uma medida que obriga os cidadãos negros a se mudar para a África na intenção de retomar as suas origens. A aprovação afeta diretamente a vida do casal protagonista formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antonio (Alfred Enoch), além de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), que mora com eles no mesmo apartamento.
“O ‘Medida Provisória’ é um presente. Tem sido. Eu ainda não sei como é a vida após o ‘Medida’. Ele ainda tá rolando, ele entrou no Globoplay e há dez é o filme mais visto da plataforma, ele continua em salas de cinema [em Salvador, o longa ainda é transmitido no cinema do Museu de Arte Moderna]. A vida após o cometa Medida Provisória eu não sei o que é”.
Alçando voos ainda maiores
Aldri Anunciação é um escritor de mão cheia. Ele adora de escrever. Gosta tanto que a primeira leitura de Namíbia, Não! teve de ser feita em 2h30. Ousado, desde criança, o autor não planeja um segundo filme para Medida Provisória, mas sim uma série. Com no mínimo 10 horas.
“Eu não faria um segundo filme, e isso é a minha opinião pública. É um assunto tão complicado, que merece um tratamento melhor com cada personagem. Me dê 10 horas pra contar essa história. O filme é um piloto, e a partir dali a gente consegue desenvolver aquela mãe negra que tem uma criança branca? como foi a vida daquela mulher? Como foi parir aquela criança? Como foi criar? Aquele casal homoafetivo inter-racial no país que se quer branco”.
Para celebrar os 10 anos de lançamento da peça, Namíbia, não! retornou ao teatro este ano e está em cartaz na sala do coro do Teatro Castro Alves até o dia 28 deste mês. Os ingressos para a peça podem ser adquiridos no site.
Aldri Anunciação já contracenou com Flávio Maurach, Sérgio Menezes, Fernando Santana e atualmente interpreta o texto com Ícaro Silva, que segundo o autor é um presente.
“É um texto que todos os negros e negras querem falar. É um embate distópico, sobre o racismo, mas com muita diversão, ironia, e muita veracidade”.
Por trás das câmeras
Pode não parecer, mas o baiano se diz inseguro, mas também não tem como não ser.
A cada 23 minutos um negro morre no Brasil, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Ou seja, a qualquer momento uma pessoa preta pode fazer parte do ‘Statistical discrimination’.
“Sou amável e inseguro. Num país como o nosso, a gente nasceu de melanina acentuada, então lidar com esse país que se quer branco é muito inseguro”.
Aldri, como boa parte da população preta, já sofreu racismo, mas pondera que age de forma branca e racional a tal situação. Afinal, não é sobre ele, e sim sobre o racista.
“Somos muito racionais lá em casa, meu pai é muito racional, ele é da conversa, do diálogo, e eu encaro o racismo no âmbito pessoal como uma coisa absurda. A pessoa olhar pra mim, sem me conhecer, e aferir qualidades, baseadas na dela, ou em estatísticas. Isso tem um componente um pouco irracional e até um pouco superficial. E minha mãe sempre falou: olhe, não se incomode, não é sobre você”.
Aldri ainda dividiu que nos momentos de folga, ler, ver séries, ficar com familiares e até mesmo não fazer nada são os seus lazeres favoritos e fez questão de deixar uma mensagem para aquele garoto que foi ao programa da Tia Arilma e fez do boneco de Playmobil uma drag queen.
“Esse mundo é muito novo. Continue pegando as caixinhas de sabonete e criando. Continue tendo o olhar afetuoso para as coisas, continue tendo um olhar de transformação”.
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Lucas Sales
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