Nas palavras de X., sua vida acabou quando não conseguiu se desvencilhar da armadilha criada por duas companheiras de time, Lia Martins e Denise Eusébio, além da coordenadora, Gracielle Silva. Sem mobilidade nas pernas após tentativa de suicídio há 10 anos, X. foi retirada da sua cadeira de rodas à força e penetrada com um pênis de borracha, diante da câmera de outra atleta, Geisa Vieira.
Desde então, a ex-jogadora de basquete para cadeirantes vive entre o quarto da casa dos pais, em Belo Horizonte, e os consultórios de psiquiatria e psicologia. "Só Deus sabe o que mais teriam feito comigo se os meninos do mesmo time não tivessem chegado", diz ela, que se afastou do esporte.
O caso envolve as principais atletas do Gladiadoras, time de basquete em cadeira de rodas do Gaadin (Grupo de Ajuda dos Amigos Deficientes de Indaiatuba), que fechou após o escândalo, aconteceu em fevereiro de 2017 e divulgado pelo Globoesporte.com em junho de 2018. À época, as três atletas foram afastadas da seleção brasileira às vésperas do Mundial, na Alemanha, em agosto. E a coordenadora Gracielle se matou com um tiro na cabeça.
O estupro é investigado pelo Ministério Público e pela Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher de Indaiatuba."Quem perdeu a vida fui eu e a Gracielle", diz X. "Elas (as acusadas) jogaram o Campeonato Brasileiro como se nada tivesse acontecido. Postaram fotos nas redes sociais e têm certeza de que ficarão impunes. Se bobear, voltarão à seleção", lamenta, ao falar pela primeira vez sobre o ocorrido. "Só quero justiça. Que elas sejam banidas do esporte. Mais do que prisão."
Segundo a vítima, outras duas atletas assistiram ao abuso e nada fizeram. Fotos e vídeos, compartilhados à época, constam do processo. "Aquilo não é brincadeira", rechaça a vítima X., que afirma que houve penetração e que sofreu bullying e ameaças nos três meses em que defendeu o Gladiadoras.
Segundo X., esta não foi a única humilhação. Conta que tinha de dormir no quarto com os homens e não no alojamento feminino. Introvertida, era o alvo preferencial de piadas. Diz que pensou em deixar o time. Segundo ela, em uma das tentativas, com os pertences já no carro, foi impedida por Gracielle. "Meu sonho era ser atleta profissional. E estava no melhor time."
O caso pode não ser isolado. “Trotes” com as recém-chegadas, incluindo os de conotação sexual, eram corriqueiros. Ao menos mais uma atleta teria sofrido tentativa de abuso mas, “com mais força nas pernas, impediu”.
"Sabia o tamanho do problema, que outras histórias poderiam aparecer", diz Hebert de Castro, advogado da vítima, sobre o trágico suicídio da coordenadora. Castro diz que a equipe, com oito profissionais, ainda se inteira dos detalhes e que o Ministério Público de Indaiatuba aceitou pedido da delegacia local para prorrogação de prazo para apuração dos fatos. Só então será oferecida a denúncia. "Não existe meio crime. Foi estupro e isso é grave."
Arrependimento
As acusadas se referem ao caso como uma “brincadeira, um trote", e que “cada clube tem um jeito". Frisam, aparentemente sem conhecimento da lei, que não houve estupro porque não houve penetração. Dizem que fizeram fotos apenas para constranger a colega e admitem que “podem ter exagerado". Falam também que se arrependem do que fizeram. Geisa e Denise contam que as meninas eram muito unidas e que “brincadeiras aconteciam direto". A ponto de a coordenadora Gracielle escrever nas redes sociais sobre o “batismo” de mais uma atleta, no caso, a vítima X.
"Curti a postagem. Era comum o batismo, que chamo de zoeira. Tiveram outros com conotação sexual. Sabe essa coisa de passar a mão, fazer carinho no rosto, dar beijo? Mas não lembro se algum foi igual. Os trotes eram conforme a liberdade que cada uma dava, não sei explicar", desconversou Geisa, que não aparece nas imagens, nega participação no episódio, mas é apontada pela vítima como a autora das fotos. "Para quem é de fora, parece um negócio muito assim... Mas eram nossas brincadeiras."
Denise diz que chegou a ser beijada à força pela vítima e que a situação cresceu, incentivada pelas outras meninas do grupo. A vítima nega.
"Ela mesma fez uma brincadeira parecida comigo. Foi uma iniciativa dela, mas depois as meninas começaram a incentivá-la a continuar. E virou uma brincadeira como a dela", compara Denise, que fala em má fé da vítima ao divulgar o caso para a imprensa. "E por que após tanto tempo, sendo que conviveu com a gente como se nada tivesse acontecido?"
"Seria normal"
Indagada sobre o que acharia se o mesmo tivesse acontecido com ela, Denise falou que “seria normal”. "Foi uma brincadeira de mau gosto, mas jamais aconteceu o que foi dito. Não foi estupro. O 'negócio' não foi introduzido. O tamanho daquilo... imagine. Falou que não queria, mas não era com ênfase", diz Denise que, assim como as outras acusadas, é cadeirante após atropelamento, recebe Bolsa Atleta e não tem outra profissão.
Gabriel Franco, casado com Geisa, fala em “assédio”: "Diria que foi assédio e a vítima deveria ter ido à polícia e nunca mais ter voltado ao clube", opina Gabriel. "As meninas estão sendo julgadas fora da esfera correta".
Denise voltou às quadras no Brasileiro, em novembro, em São Paulo. Lia e Geisa também. Estas, porém, já haviam disputado torneios regionais, como o Goiano, Paranaense e Mineiro, desde a saída do Gaadin. No Brasileiro, defenderam o Adefirv (Associação de Deficientes Físicos de Rio Verde), de Goiás, mesmo sob protesto de outras atletas. O time ficou em 2.º (de sete).
"Não vou condenar ninguém. Se não existe proibição, podem jogar. São ótimas atletas e não é fácil ter gente disponível por uma semana e de última hora. Muitas trabalham", fala Jovair Cardoso, vice-presidente da Adefirv.
A Confederação Brasileira de Basquete em Cadeira de Rodas (CBBC), no entanto, foi cobrada, de forma informal, por ter liberado a participação delas. A entidade havia as afastado da seleção.
Segundo o presidente da CBBC, Valdir de Moura, é responsabilidade dos times a inscrição das atletas para o Brasileiro e que elas “são inocentes até que haja julgamento e sentença”.
"Nada nos impede de jogar. Estou tentando seguir a vida. Ninguém está fechando as portas para mim, não me sinto julgada. Meus amigos sabem quem sou e dane-se o que os outros falam. Só quero que isso se resolva logo, que a gente seja julgada pela Justiça", fala Lia, integrante da seleção nas últimas três Paralimpíadas, incluindo a Rio-2016 quando o Brasil foi 7º, a melhor participação da história. "Este episódio prejudicou a seleção. Não foi justo nosso afastamento. Quem nos denunciou não fez à Justiça, e ser vista assim, ninguém quer."
Lia, vencedora do Prêmio Brasil Paralímpico em 2011, 2012 e 2015 e bronze nos Parapans de Guadalajara e Toronto, afirma que sua vida continua igual, exceto pela saída de Indaiatuba, onde morava, e da seleção. Diz que se arrepende e que quer voltar à seleção. No ano que vem, haverá o Parapan-Americano, em Lima, e em 2020, a Paralimpíada de Tóquio.
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Redação iBahia
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