Sancionada em 29 de agosto de 2012, a Lei federal 12.711, conhecida como Lei de Cotas, completa, em 2022, dez anos de existência. Desde então, as universidades públicas brasileiras vêm se reconfigurando, com mais inclusão e diversidade nos corredores acadêmicos.
A lei determina que universidades e instituições de ensino federais reservem metade das vagas para estudantes que fizeram todo o ensino médio em escolas públicas, e que consigam a nota necessária para ingressar na instituição escolhida.
Leia também:
Dentro dessa porcentagem, as vagas são divididas. Metade para alunos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio por membro da família; e a outra, para alunos com renda familiar acima de um salário mínimo e meio, também por membro da família.
As cotas raciais viraram uma subcota dentro dessa reserva de vagas para alunos de escolas públicas. A porcentagem para pretos, pardos e indígenas não é fixa, e varia de acordo com a quantidade de habitantes desses grupos no estado onde fica a instituição de ensino.
A partir desse sistema de políticas públicas, segundo o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas, de 2001 a 2020, a presença de pretos, pardos e indígenas matriculados em universidades públicas no Brasil passou de 31% para 52% do total de estudantes, e os de classe C, D e E de 19% para 52%. E o reflexo não é só em números, mas na vida pessoal e profissional desses estudantes.
De Porto Seguro para o mundo
A estudante de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Mayara Bomfim, de 24 anos, é um exemplo do quanto uma vida pode mudar com uma oportunidade. E, no caso dela, com uma política de inclusão.
Oriunda de escola pública, Mayara saiu de Porto Seguro para Salvador, deixou mãe, irmã e familiares para viver o sonho - e também o objetivo - de cursar a universidade. Ela foi aprovada por meio da cota AA3, ou seja, estudante de escola pública com qualquer renda.
"Então, o sistema de cotas, ele foi extremamente importante para mim porque eu sou oriunda de escola pública e sou filha de mãe solo e cozinheira. Então, era a única escola que eu poderia estudar era uma escola pública", conta Mayara.
Segundo a estudante do sétimo semestre do curso, mesmo com dedicação e bons professores, existe uma "defasagem" na escola pública, cujo impacto fica mais evidente no momento em que os alunos prestam vestibular para universidade e institutos federais, e também particulares.
"Por mais que eu tivesse professores excelentes e também uma aluna extremamente dedicada, tinha toda defasagem de uma escola pública. Você sente isso quando vai entrar numa universidade e quando participa do processo seletivo e você vê que há pessoas de realidades financeiras e de contextos sociais extremamente diferentes do seu", conta.
Ainda segundo Mayara, o sistema de cotas permite uma disputa mais igualitária, com realidades parecidas com as dela.
"A cota, nesse sentido, foi muito importante para eu poder concorrer com pessoas de um contexto social parecido com o meu", analisou.
E da porta aberta que foi iniciada durante o processo seletivo com a possibilidade das cotas, Mayara alçou voos mais altos. A jovem participou de outras políticas públicas na universidade, com bolsa dentro da instituição para iniciação científica e também a oportunidade de fazer um intercâmbio, com bolsa, para a França.
"A minha vida mudou completamente. Eu vim para cá...eu participo de outras políticas públicas na universidade. Eu sou bolsista, fiz parte de projetos de pesquisa e, em 2019, eu fiz o intercâmbio, que também foi com bolsa. Tudo isso eu vivi devido a minha entrada na universidade, devido a essa política pública de equiparação e de reparação", afirmou.
Em 2019, no período de setembro a janeiro de 2020, a estudante cursou um semestre letivo na Universidade de Sorbonne, na França, conhecida e respeitada como uma das melhores do mundo para cursos de artes e linguagens.
Mayara Bomfim destaca também que a mudança foi sentida pela família. Com a ida da jovem para a capital baiana, e a possibilidade de trabalhar na área dela de trabalho, a família pôde economizar com os gastos.
"É claro que isso impactou também diretamente na minha vida, uma vez que eu estou aqui em Salvador, morando sozinha, consigo trabalhar na minha área, sem dependente para me sustentar. Minha mãe não precisa tirar dinheiro de onde ela não tem, para poder me enviar, graças ao conhecimento que eu adquiri aqui, que consigo aplicar hoje em dia e trabalhar e consigo até mesmo ajudar minha família e ajudar minha mãe e minha irmã. Tudo isso com a minha entrada e com o conhecimento que eu adquiri aqui", conclui a estudante.
Equiparação de oportunidades
Já o estudante Lucas Reis, 27 anos, atualmente cursando Direito na Universidade Federal da Bahia (Ufba), tem uma longa trajetória na academia.
Começou aos 17 anos, ainda perdido no que queria fazer. Ingressou por meio das cotas para pretos, pardos e indígenas, no curso de Bacharelado Interdisciplinar de Artes. Antes de se formar, tornou-se referência para alunos, atuando como voz ativa em movimentos estudantis .
Logo depois, reingressou como estudante de Letras Vernáculas com Inglês. Lá, foi estudante de iniciação científica, passou a dar aula em escolas públicas da capital baiana, organizou encontros estudantis, fez cursos de línguas e por aí vai. Agora, caminha em uma nova estrada acadêmica, como estudante de Direito, considerado, até hoje, um dos cursos mais elitistas da instituição.
O aluno sabe bem os entraves dentro dos ambientes acadêmicos de universidades públicas federais. Assim como o impacto da política de cotas.
"Falar na lei de cotas é falar em equiparação de oportunidades. Quando a gente fala em equiparação de oportunidade a gente está falando em tratar os iguais igualmente e o desiguais desigualmente a medida das suas desigualdades, como diz Aristóteles. E isso é a concepção por detrás da lei de cotas. Então, não é tratar a todos os iguais e proporcionais aos desiguais a mesma possibilidade aos que têm a capacidade, o poder socioeconômico, intelectual, as condições para estar nesse espaço, nesse espaço universitário", reflete.
A lei de cotas, na vida dele, teve diferentes impactos. Como homem negro, de bairro periférico, Lucas sabe bem a realidade e estatística cruel que a sociedade impõe sobre esses corpos.
"Primeiro, por ser um homem negro, de um bairro relativamente periférico, ali à margem da sociedade, então quando a gente pensa esse cenário, a gente pensa que pessoas, na mesma condição que eu, são pensadas para virar uma estatística cruel na sociedade. E a lei de cotas veio com a perspectiva de transformar isso, de tirar essas pessoas, que como eu, eram enxergadas ou tidas como uma estatística, diga-se de passagem muito sofrida e dolorosa, e dar uma nova perspectiva", relata o estudante.
No caso dele, a situação é ainda mais especial, por ser o primeiro da família a entrar na universidade pública federal.
"Para mim, ser o primeiro da minha família, de gerações, a conseguir entrar na universidade, e não só na universidade, uma universidade federal por uma política pensada e gerida em um governo democrático progressista, é de suma importância. É mudar o cenário. É mudar a perspectiva para mim, é abrir a visão da possibilidade para outras pessoas no meu entorno, que enxergam essa possibilidade, vê como um exemplo a ser seguido... ou não também...mas começa a almejar", afirmou.
'Uma porta abre outras'
Ainda segundo o estudante, essas possibilidades se ampliam na medida que novas oportunidades vão surgindo. Como se uma porta abrisse outras.
"Muitas das vivências que eu tive dentro da universidade, que vivenciei, seja me tornar um sujeito crítico, pensante enquanto sujeito atuante na sociedade, ter a oportunidade desenvolver a pesquisa, a extensão, ter engajamento social e poder retribuir à sociedade todo conhecimento, e toda as vivência e oportunidades que eu tive de alguma forma, isso é essencial", destaca o estudante.
Atualmente, Lucas atua como professor de Letras e relata que as trocas de sala de aula servem como fonte para novas visões dos alunos.
"Em ponto, é isso. Servi como esse norte, esse exemplo. Essa fonte para novas visões. Hoje, enquanto professor, eu consigo compartilhar com meus alunos, alunos periféricos que vieram ou que estão na mesma realidade que eu tive um dia, essa possibilidade. Há pouco tempo atrás era uma realidade impensável, inatingível, de difícil concretização. Um negro, pobre, periférico, oriundo de escola pública, adentrar numa universidade pública, era uma exceção à regra. Graças a políticas de cotas uma série de alterações vem sendo feitas e galgadas na nossa sociedade", afirma.
'Entrar só não basta'
Apesar disso, os alunos destacam que entrar na universidade é apenas um dos caminhos que é preciso ser trilhados. Depois de conseguir a vaga, há também a manutenção, e é nesse ponto que os alunos acreditam que a Lei de Cotas precisa evoluir.
"Apesar de todos os avanços, há ainda muito a avançar. Enquanto sociedade, enquanto pensamento social, porque, apesar da universidade trazer uma série de novas oportunidades e de novas vivências, a gente começa a perceber depois que entra, que entrar só não basta. E aí a gente vai desvelar por um caminho de necessidades, de manutenção desse sujeito nesse espaço. Tão difícil quanto continuar, é se manter, é continuar", reflete Lucas Reis.
O estudante conta que muitos amigos deixaram de concluir o curso pela necessidade de trabalhar ou por vivenciar situações que não se conciliam com a realidade da universidade.
"A universidade abriu as portas para um novo público, com a Lei de Cotas, mas ainda tem muito a entender sobre a realidade desse novo público que adentrou. Então a gente precisa de uma série de avanços em questão de manutenção", diz.
Lucas destaca, principalmente, a necessidade do aumento de cursos noturnos. Atualmente 29 cursos, de um total de 96 fornecem aulas durante o turno da noite, como por exemplo Direito, Letras e Farmácia.
"Seja uma assistência estudantil mais eficaz, seja uma política para fortalecimento de cursos noturnos...muitos cursos ainda não têm a possibilidade de se fazer à noite, aí a gente vai mantendo um elitismo em alguns cursos, como medicina e psicologia, e afasta alguns alunos da possibilidade poder trabalhar pra se manter e estudar, de poder ter essa vivência dupla, que é extenuante também. A universidade ainda precisa pensar esses caminhos, mas isso não tira a importância da instituição da Lei de Cotas para o acesso. Diversificou, modificou a cara da universidade pública, mas é só o começo. Ainda precisamos avançar muito, não só em políticas de acesso, mas de manutenção desses alunos dentro da universidade pública", conclui o estudante.
*Sob a supervisão da repórter Claudia Callado
Leia mais sobre Educação em iBahia.com e siga o Portal no Google Notícias.
Veja também:
Nathalia Amorim
Nathalia Amorim
Participe do canal
no Whatsapp e receba notícias em primeira mão!