Desde que o mundo é mundo, admitindo alguns exageros, o ser humano coleciona algo. Não é de estranhar que apareçam teorias dizendo que o homem pré-histórico já guardasse como troféus, em suas cavernas, os resultados de suas caçadas. Há registros de coleções de cerâmicas, pedras preciosas e outras peças que remontam aos faraós egípcios e aos imperadores romanos da Antiguidade Clássica.
Por ser algo muitíssimo custoso no passado, o ato de colecionar foi deixando de ser restrito a reis e aristocratas há cerca de 500 anos, com o enfraquecimento da visão medieval, e quase tudo passou a ser colecionável, a começar pelos autorretratos, principalmente com o Renascimento, a invenção e popularização da imprensa, a Revolução Industrial e o interesse cada vez maior pela Ciência, principalmente pelas espécies animais.
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Já durante o período das grandes navegações, na euforia de conhecer a natureza e juntar objetos curiosos vindos de lugares distantes, os nobres enviavam marinheiros e piratas mundo afora para adquirir tudo que fosse exótico para a época. Os itens eram expostos em lugares sofisticados e incluíam todo o tipo de quinquilharia, inclusive certas “preciosidades”, como os inexistentes filhotes de dragão (pequenos lagartos, na verdade) e até chifres de unicórnios (certamente de caprinos).
Não demorou muito para que curiosos e bizarros colecionadores quisessem ter em seu acervo um corpo humano inteiro ou pelo menos uma cabeça ou um feto, incluindo nesse catálogo humanos hermafroditas, anões e com defeitos congênitos. A estranha mania avançou classificando tudo, de elementos químicos a seres vivos, nos séculos seguintes, com os colecionadores especializados. E o destino de tudo isso acabou sendo uma instituição que também entrava na moda: o museu. Mais algum tempo e as coleções oficiais começaram a ser preenchidas com relíquias pilhadas de nações subjugadas pelos países colonialistas.
Se essa curiosa motivação permaneceu sem grandes mudanças por séculos, não se pode dizer o mesmo do perfil dos colecionadores, pois a partir do Século XX, a produção em massa possibilitou que coisas antes muito restritas ficassem acessíveis a toda a população. Já não era mais preciso viajar pelo mundo, pois a fabricação de edições em grande escala e depois limitadas pelo tempo, tornaram, décadas depois, itens comuns em verdadeiras raridades.
A vontade de encontrar preciosidades também esteve ligada aos objetos sagrados e a impossibilidade de achá-los, como o corpo de Cristo, o que seria a principal relíquia cristã, fez nascer o desejo de encontrar fragmentos da cruz, o santo sudário e os pregos que teriam crucificado Jesus. Histórias fantásticas contam que 29 cidades da Europa afirmaram possuir uma das peças que fincaram o mártir na cruz, apesar de se saber que foram usados três pregos na crucificação. Mercadores de má fé, sem trocadilhos, comercializavam dentes, cabelos e fios da barba de Cristo, assim como gotas do leite dos seios da Virgem Maria. E nem se pretende falar do Santo Graal, que inspira livros, peças de teatro, séries e filmes até os dias de hoje.
A gente pode até se perguntar o que o culto a relíquias sagradas, vistas como talismãs, tem a ver com um álbum de figurinhas da Copa do Mundo, flâmulas esportivas ou uniformes históricos defendidos por seu clube de coração, mas o desejo que move estas coleções é praticamente o mesmo: resgatar um mundo que não existe mais ou que ficará eternizado no tempo e, se possível, ser capaz de controlá-lo.
No livro “Ter e Manter: Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções”, o historiador alemão Philipp Blom afirma que o colecionismo é mais que um simples passatempo de adolescentes e revela justificativas históricas, filosóficas e psicológicas para esta paixão. De acordo com ele, cada objeto que tanto desejamos é, de fato, um atributo daquilo que desejamos, ou seja, coleções ajudam a nos livrarmos da impotência de não coordenarmos inteiramente nem mesmo a nossa vida.
Enquanto crianças e adolescentes, o hábito de colecionar nos ensina a organizar e controlar as coisas, decidindo a “vida e a morte” de cada objeto, como uma forma de aprender a tomar decisões e a lidar com o mundo exterior. Já no decorrer da fase adulta, o ato se manifesta pelo saudosismo, como forma de reviver o tempo e ressignificar a saudade de um tempo que não volta mais.
Engana-se, porém, quem acha que o colecionador enxerga seus objetos como mortos, pois quando um selo ou uma figurinha segue para um álbum, passa a ser visto com olhos mais atentos e brilhantes. Até mesmo uma distorção no corte ou na impressão, despercebida pelas pessoas comuns, ganha uma aura mágica. E em coleções de itens produzidos em massa nos tempos atuais, essas imperfeições dão à peça uma individualidade e um preço diferenciado.
Um exemplo bastante atual é a febre com o álbum da Copa do Mundo de 2022, com suas 670 figurinhas. E como tudo é marketing e incentivo à diferença, completar o álbum não é mais o único e principal objetivo, mas obter os 80 cromos extras - 20 jogadores no total e cada um nas versões comum, bronze, prata e ouro, que indicam a raridade de cada sticker e são divididas em 'legends' (lendas) ou 'rookies' (novatos). Para se ter uma ideia, em menos de dez dias de seu lançamento pela Editora Panini, a versão dourada da figurinha de Neymar Jr aparece em sites de compra e venda por quase R$ 10 mil.
Uma estimativa não oficial da fabricante afirma que uma figurinha extra do tipo comum aparece a cada 190 pacotinhos abertos, a bronze a cada 317, a prata a cada 950 e a ouro (a mais rara) a cada 1900. O valor mínimo para completar o álbum é de R$ 536, mas, para isso, o colecionador não poderá receber nenhuma figurinha repetida, o que significa 670 em exatos 134 pacotes.
De todo modo, um colecionador pode ir à ruína ou à fortuna com seu objeto de desejo, pois itens aparentemente banais podem atingir valores absurdos no mercado de colecionadores, como o famoso “Olho de Boi”, o primeiro selo brasileiro, impresso em 1843, que pode valer cerca de R$ 2,4 milhões. Fato é que um colecionador, mesmo quando obtém uma raridade, não sente seu desejo atenuado, pois nada, para ele, pode ser mais paradoxal e triste que completar uma coleção. Até porque quando se obtém a nova aquisição, os olhos já vislumbram a próxima peça.
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Sílvio Tudela
Sílvio Tudela
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