Após mais de 50 anos de carreira e dezenas de discos gravados, Caetano Veloso é reconhecido como um dos grandes ícones da Música Popular Brasileira (MPB), com aclamação unânime de público e crítica. Entretanto, nem sempre foi assim.
Durante a década de 70, álbuns que hoje são considerados emblemáticos causaram reações mistas ou negativas junto à imprensa especializada. O portal iBahia selecionou cinco desses trabalhos e resgatou as opiniões da crítica sobre eles, através de pesquisas em acervos digitais de jornais e revistas. Confira:
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'Transa' (1972)
O segundo disco gravado durante o exílio de Caetano Veloso em Londres é hoje reconhecido como um marco na carreira dele e na MPB como um todo, com as colagens de referências, letras bilíngues e influências da tradição baiana. Na época do lançamento, "Transa" foi recebido por parte da crítica brasileira como uma tentativa de "internacionalização" do som de Caetano.
O jornalista Romeu Nunes, que assinava a coluna "A Bossa é Disco", no extinto periódico O Jornal, do Rio de Janeiro, fez um paralelo entre as letras em inglês de Caetano e o sucesso internacional do maestro Sérgio Mendes, que fez carreira nos Estados Unidos com um som que fazia referências à bossa nova e ao samba. Ele também avaliou o álbum como uma "busca desordenada de novos caminhos":
"Acho muito engraçado, quando certas pessoas do ambiente artístico-musical criticam Sérgio Mendes, alegando que ele faz música americana, ou, no dizer desses mesmos críticos, o "som americano", quando, o que essas pessoas desejam mesmo, lá bem no fundinho do subconsciente, é justamente fazer a mesma coisa e obter o mesmo sucesso, que tanto incomoda. Com Caetano, não é o caso (no primeiro item), isto é, de criticar o Sérgio, mas, totalmente no segundo, pois o que Caetano apresenta neste disco é, nada mais, nada menos, que uma tentativa de internacionalizar, se não sua música, pelo menos seu cartaz como intérprete", disse o jornalista.
"Este LP - muito bem cuidado e muito bem gravado, com ótimo som - é, a nosso ver, uma tentativa válida (lá vem de novo o termo super gasto) de atingir esse objetivo, mas, não é, de modo algum, um produto do talento com T maiúsculo do Caetano daquelas músicas, mas uma radiografia da desorientação e da busca desordenada dos chamados 'novos caminhos', a que todos os mitos da música popular se sentem obrigados, para não serem rotulados com o estigma do 'já era'. Sentimos nesse LP esse objetivo: de provocar um impacto, de provocar controvérsias", completou ele.
De modo geral, a crítica brasileira elogiou o resultado sonoro do álbum e criticou a ausência de créditos aos músicos. Na edição de 18 de maio de 1972 do Diário de Pernambuco, Fernando Spencer escreveu que "Transa já pode ser considerado o disco do ano". Já o colunista D'Almeida, da revista Intervalo, considerou que o LP causava a "sensação de ter chegado com atraso a um encontro que nunca foi marcado".
'Araçá Azul' (1973)
Marcado pelo experimentalismo levado às últimas consequências, com direito a ruídos, sobreposição de vozes e letras inspiradas na poesia concreta, "Araçá Azul" deixou a crítica confusa e desagradou fortemente o público na época de seu lançamento, o que contrasta fortemente com o status cult que o álbum adquiriu década depois.
"Se em Transa ele canta músicas como Mora na Filosofia e It's a Long Way, que, por uma contingência, poderiam subir nas paradas e motivar vendagem, em Araçá Azul ele quebra, definitivamente, seu compromisso com o sucesso imediato. Suas preocupações são, tão-somente, criativas", avalia Fernando Spencer no Diário de Pernambuco, edição de 12 de fevereiro de 1973. "Araçá ilustra o postulado do maestro Rogério Duprat de que a música está morta e de que, portanto, o terreno está limpo para se fazer o que quiser. (…) Essa liberdade tem as suas cargas: ela rejeita totalmente as fórmulas, em favor da invenção permanente", escreveu Luiz Carlos Maciel, no mesmo periódico, em 5 de junho de 1973.
No segundo semestre do ano, a imprensa carioca começou a noticiar que "Araçá Azul" estava batendo recordes de devolução nas lojas de discos. A coluna de Julio Hungria no Jornal do Brasil publicou, em 30 de setembro de 1973, um depoimento do próprio Caetano sobre o assunto.
"Quando me contaram que Araçá Azul estava batendo recordes de devolução (as pessoas que compraram o disco durante a primeira quinzena de seu lançamento voltam indignadas - uma percentagem delas - ao balcão do vendedor) eu disse: claro - aquele disco não é pra ser comprado, nem mesmo pra ser vendido, ele foi apenas muito bom de fazer".
"Araçá Azul foi apenas um disco correspondente àquelas de descompromisso, solidão e amadorismo que eu curti na volta de Londres em todas as entrevistas e entrevastas sic que eu dei. Eu não pensei duas vezes antes de gravar esse disco e não tive tempo de fazê-lo enquanto o gravava. O que eu não entendo é como alguém pode supor que Araçá Azul é um disco elaborado, pensado, intelectual, e ainda assim achar bacana ou mesmo aceitável".
'Bicho' (1977)
Hoje reconhecido por conter clássicos de Caetano, como "Odara", "O Leãozinho" e "Tigresa", o álbum "Bicho" causou grande polêmica junto à crítica quando foi lançado. A reação negativa se devia, em grande parte, à proposta dançante e "sem compromisso" do disco, justamente em um contexto de ampliação das discussões sobre a abertura política da ditadura militar.
"Não acredito que Bicho gerasse tanta controvérsia se tivesse sido editado em época de maior silêncio geral. A geral, porém, se agita, e precisa de solidariedades unânimes. Brasil à parte, o poeta Caetano Veloso continua exercitando a sua fina sensibilidade", escreveu Luís Carlos Cabral em resenha publicada na edição de 1977 da extinta revista Pop.
Outro ponto muito rechaçado pela imprensa especializada em 1977 foi a ligação do álbum com a música de discoteca, considerada "alienante" e "produto do imperialismo norte-americano" por muitos críticos da época. O show de lançamento do álbum, "Bicho Baile Show", montado por Caetano com o apoio da Banda Black Rio, foi classificado pela jornalista Maria Helena Dutra, do Jornal do Brasil, como um show "feito para esquecer".
"Afastemos, porém, e outra vez, das ciladas de discutir e refletir sobre conteúdos porque afinal esse show foi feito para esquecer, já que não atinge mesmo sua desejada finalidade de 'feito para dançar'(…) Parodiando o exímio artista da palavra, o sempre gostável e também senhor Caetano Veloso em sua música Tigresa: 'As garras do artista Caetano nos marcaram o coração. Mas as besteiras de menino que ele disse, não'."
Na edição da Folha de S. Paulo publicada em 19 de julho de 1977, Jary Cardoso registra o cancelamento do show em São Paulo por medo da repercussão negativa. "O baiano não esperava uma agressividade tão grande por parte dos críticos em relação às suas propostas dançarinas ('O certo é dançar', diz uma de suas músicas) e 'alienantes' (o que ele não concorda)", escreveu.
Na tentativa de apaziguar as discussões, Tarso de Castro afirmou no mesmo jornal, em 31 de julho: "Mas é realmente formidável que agora se esteja vivendo o repeteco das perseguições a Caetano Veloso. Ah, que belos críticos temos: se não se especializaram em música são totais admiradores do próprio fascismo. (…) Falemos de uma coisa boa: 'Bicho', de Caetano Veloso, é um disco lindo, limpo, de uma correção assustadora, irritante".
'Muito – Dentro da estrela azulada' (1978)
Após a repercussão controversa de "Bicho", Caetano partiu para uma proposta musical mais intimista, inaugurando a parceria com A Outra Banda da Terra.
Em depoimento gravado em 2012 para o canal do YouTube "falacaetano", o artista afirmou que o disco foi "espinafrado" pela crítica. No entanto, a pesquisa feita pelo portal iBahia revela uma recepção neutra e, em alguns momentos, até positiva.
"Talvez pela direção de produção do próprio Caetano, seu novo LP, 'Muito (Dentro da Estrela Azulada)' traz um trabalho inteiramente pessoal como se tivesse sido feito para ser ouvido pelo próprio autor e seus amigos mais chegados. (…) Muito é um dos mais poéticos trabalhos já feitos pelo compositor baiano. A foto de sua mãe na capa dá um toque de ternura, que ele consegue manter durante quase toda a duração do LP. Caetano está diferente. Muito diferente", escreve Luiz Augusto Xavier no Diário do Paraná de 26 de julho de 1978. No Jornal do Brasil, Alberto Carlos de Carvalho elogia o canto de Caetano, concluindo que "o LP é bonito e deixa Caetano próximo a um índio contemporâneo brasileiro".
Já para Dirceu Soares, que assinava a coluna “Toca/Disco” na Folha de São Paulo, o disco era "um tanto improvisado" e vem um ano depois do "infeliz LP Bicho, quando ele queria apenas dançar quando não era hora de apenas dançar". O crítico avaliou "Muito" como uma "sonda espacial, destinada a sentir a barra por aí depois de Bicho".
'Cinema Transcendental' (1979)
O segundo disco de Caetano com A Outra Banda da Terra conquistou o público com canções que logo se tornaram hits, a exemplo de "Oração Ao Tempo", "Beleza Pura" e "Menino do Rio". "Cinema Transcendental" também conseguiu um olhar mais carinhoso da crítica em comparação aos trabalhos anteriores.
"Livre de alguns graves estigmas do tropicalismo, Caetano Veloso adequa-se e supera os novos tempos. Não é só uma mensagem musical, mas um exercício poético que se adensa pelos temas do amor, do tempo do artista, dos trilhos urbanos. Um maravilhoso suingue, brejeiro como um beatle, o Caetano é a encarnação de um poeta jovem que amadurece suavemente, sempre pede tempo e acaba encontrando descobertas com sua outra banda da terra", escreveu Celso Araújo no Correio Braziliense de 14 de dezembro de 1979.
Já o jornalista Tárik de Souza preservou a acidez, mesmo em meio aos elogios registrados na coluna "O Som Nosso de Cada Dia" do Jornal do Brasil de 9 de dezembro: "Cansado de ser moderno, no sentido vanguardista do termo, Caetano Veloso, seguindo a lição do poeta Carlos Drummond, preferiu eternizar-se. Para encurtar caminho, resolveu logo cantar a transcendência, no seu novo LP, Cinema Transcendental, ladeado nada menos do que pelo conjunto A Outra Banda da Terra. (…) Se não logra a imortalidade, ao menos espanta, com a dose habitualmente generosa de talento, o efêmero narcisismo autodestrutivo de seus últimos trabalhos".
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Juliana Rodrigues
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