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SALVADOR

'Novos' soteropolitanos recriam atmosfera das pacatas cidades do interior em Salvador

Eles vieram do interior de corpo. E só. Porque a alma ficou por lá

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11/12/2011 às 16:26 • Atualizada em 29/08/2022 às 0:04 - há XX semanas
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Longe de casa, há muitos ou nem tantos anos assim, uma turma de ‘novos’ soteropolitanos não esquece suas origens. Em meio à paisagem urbana de Salvador, eles recriam a atmosfera daquelas pacatas cidadezinhas do interior. Gente como o auxiliar de serviços gerais Ananias Araújo, 43 anos, que há 25 saiu de Coração de Maria, a 104 km de Salvador, e passou a vender doces no Largo Dois de Julho. Não sem manter um vício. “Sempre tive minha guiazinha de queimado e gostava de dominó. Brincava sozinho, jogava lustrado. Era o que eu mais fazia na minha cidade e fiz o mesmo aqui pra ficar sempre lembrando de lá", lembra. “Aí, aos poucos, o povo foi se ajuntando”, conta. O tal povo acabou dando origem à Associação dos Jogadores de Dominó do Campo Grande, da qual Ananias é presidente. “Jogava apostando com meus irmãos. Acabei criando relação com o jogo. Hoje, quando saio do trabalho, venho direto pra cá”, admite. No meio da correria do centro da cidade, o passeio da praça vira o palco das disputas em torno das pedrinhas. “A gente esquece de tudo. Não tem trânsito, gente correndo... Nada disso interessa”, ressalta o presidente. Quanto a Coração de Maria, Ananias vai sempre que pode. “Queria ir todo fim de semana, mas minha mulher não gosta muito de roça. Aí, o dominó é uma distração que lembra muito minha família”, conta.
Ananias trouxe o vício pelo dominó de Coração de Maria para o Campo Grande
Regras A brincadeira que ele trouxe do interior para a praça, hoje já reúne mais de 60 associados, com regulamento e tudo. “Quem quiser se associar, paga R$ 5 de inscrição e R$ 3 de mensalidade. Pode brincar de segunda a sexta, das 16h às 21h”, convida. O dinheiro é usado para comprar novas peças e cadeiras. Domingos e feriados não tem jogo. “Esses dias a gente tira para descansar. Mas mesmo com movimento, dá pra brincar sossegado. Até no Carnaval, com trio tocando ou parado, a gente joga”, diz. As reuniões da associação têm também torneio. “De três em três meses, a gente faz campeonato. Quem ganha leva troféu”, conta. O próximo será no dia 21. Além disso, tem cerveja e refrigerante. Mas, e as regras, presidente? “Não pode: fumar, xingar, jogar bêbado, dar opinião... E o melhor: se fechar o jogo e chorar (perder), tem que usar a chupeta”, diz, às gargalhadas. Cantinho Um desses associados, que pelo menos uma vez por semana vai ao Campo Grande participar da brincadeira, é o aposentado Aloísio Gomes, de 85 anos. Mas, além das pedrinhas, o que ele gosta mesmo é de se passar horas em em um lugar especial de sua casa. O senhorzinho veio de Itabuna, no Sul do estado, para a cidade grande, mas não esquece sua terra natal. Para matar a saudade, ele resolveu reconstruir um pedaço de sua juventude no quintal de casa. “Depois que acabou a 2ª Guerra Mundial, em 1946, vim pra cá de vez. Mas tenho muita saudade da minha casa, dos tempos da roça de cacau. Como ainda não voltei pra lá, o quintal do meu ‘coió’ dá conta de me manter perto do meu passado”, se emociona. A casa, na 3ª Travessa Daniel Lisboa, lembra bem as moradias do interior. No quintal, as árvores de seu Aloísio dão o clima. Ao lado, porém, um prédio e o barulho do trânsito intenso não deixam dúvidas: ele está na capital. “Nem ligo. Pelo menos três vezes por dia fico no quintal curtindo meu espaço”, conta o motorista aposentado. Com voz tímida, mas sorriso constante, Aloísio transborda hospitalidade. “Você bebe refrigerante? Uma cervejinha? Fique à vontade”, fala e leva as mãos ao rosto, rindo de si. Ele vive sozinho. “Não moro só. Moro com Deus”, diz. E bem-humorado, completa. “Minha nega que vem aqui. Sou viúvo duas vezes e não tenho filhos”. E mais risos. Nos planos dele, está o retorno para Itabuna. “Vou vender tudo. Meu terreno tem 397 m². Quero ir embora e ser enterrado na minha cidade”, sonha. Mas antes de voltar para lá, a voz da sabedoria deixa uma dica para a equipe de reportagem. “As dificuldades da vida são muitas. Não se confie em ninguém. A gente não tem amigo”. Hábitos passam de pai para filhoDe tão fortes, alguns hábitos às vezes passam de pai para filho. Foi o que aconteceu com o recepcionista Ricardo Santos de Jesus, 25. Ele nasceu em Salvador mesmo, mas acabou contagiado por uma paixão do pai: criar passarinhos. O padeiro Manoelito de Jesus, 51, veio de Coração de Maria, a 104 km da capital. “Sempre via meu pai cheio de passarinhos e isso me chamava a atenção.
Ricardo leva os passarinhos para a praça. Hábito foi herdado do pai
Ele me deu um quando eu tinha 10 anos e, desde então, tenho o hábito”, diz Ricardo. Nas manhãs de finais de semana, o recepcionista sai de casa com seu papa-capim para encontrar um grupo de amigos na rua Dendezeiros, Cidade Baixa. “A gente leva os passarinhos e fica de papo na praça”, conta ele, que tem hoje três papa-capins. “Esse hábito não vou largar nunca”, promete. Tardes de olho na vizinhançaBasta entardecer para que a dona de casa Marlene Rodrigues, 68 anos, coloque a cadeira na porta de casa para “ver o tempo passar”. Esse hábito, ela criou em Governador Mangabeira, a 132 quilômetros de Salvador, junto com seus parentes. Longe da família há 40 anos, agora ela se reúne com as vizinhas para mais de dois dedos de prosa, na Vila Operária 83, Boa Viagem, Cidade Baixa. E numa mistura de simpatia com olhar desconfiado, ela solta. “Todo final de tarde venho pra cá tomar uma fresquinha. Era assim que eu fazia lá na minha cidade e repito em Salvador. Aqui, dentro de casa, é um calor danado também”, comenta. De frente para a pracinha, entre uma conversa e outra, ela escuta o canto dos pássaros... e o barulho dos veículos que passam pela avenida Luís Tarquínio. “A praça dá um jeitinho de lá. Só que no meu interior é beeem mais calmo. Não ouve nada de carro”, conta. Sua vizinha, a dona de casa Ivaneide dos Santos, 48, concorda: “Nos finais de semana, nossa rua é invadida por carros e motos. A gente coloca ‘piquetes’ para preservar nosso espaço”, lamenta. Para lembrar de Tanquinho de Feira, a 146 quilômetros de Salvador, ela vai às feirinhas organizadas nos finais de semana. “Isso me lembra muito lá. Dá uma saudade!”, confessa.
A prosa de Marlene e Ivaneide as transporta diretamente para suas cidades de interior
Mas voltar para o interior, nem pensar. “Já acostumei aqui. Lá, só a passeio”, assegura Ivaneide, que mora na capital há 23 anos. Outra coisa que faz as amigas lembrarem de suas terras de origem é a vizinhança. “Aqui, os vizinhos gostam muito da vida dos outros. Mas a gente tem que ser justa: no interior é bem pior”, diverte-se dona Marlene. Mesmo assim, da mesma forma que Ivaneide, ela não quer saber de voltar para a terra natal. “Só quando eu morrer”, brada. Enquanto os dias passam, as amigas curtem o cair da tarde na Cidade Baixa, sem pressa, sem agonia. “Quando a gente menos espera, já passou da meia-noite”, diz Marlene.

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