O relógio marca 15h, Sildivan lança o anzol às águas da Lagoa do Abaeté e espera o cabo de madeira suspender com o peso da tilápia. A vara é finalmente erguida, mais um peixe é depositado na areia. Está ao lado da namorada, Janúsia, quando vasculha as lembranças dos primeiros dias em que esteve ali, em 1993: “Tinha que chegar cedo, disputar lugar”. Hoje, o garçom madruga mais por hábito que por necessidade. O Parque Metropolitano Lagoas e Dunas do Abaeté daqueles dias lhe aparece como um passado distante ao mirar o presente à vista: “O movimento é fraco, muita gente deixou de vir”.
No centro comercial logo acima da Lagoa, Januário está na estaca zero, bem sabe do que fala Sildivan. Apoiado no balcão frontal do restaurante, conversa com a reportagem sobre o dia a dia no Abaeté. Rotina que conduz há dez anos. Conta do tempo em que tinha oito funcionários, há quatro anos, para administrar as mesas lotadas de clientes. E compara com o atual contexto. “Antes, tinha turismo. Agora... Ficamos só eu e um funcionário fixo. Nos fins de semana, quando o movimento pode crescer, contratamos um diarista”, desabafa.
O motivo da queda no movimento é conhecido: desde 2007, nenhum dos 35 ônibus que fazem passeios de turismo em Salvador chega até o Abaeté, administrado pela Secretaria do Meio Ambiente do Governo do Estado. Antes disso, de novembro a fevereiro, pelo menos 20 ônibus com turistas desembarcavam no local, calcula Silvana Rós, presidente da Associação de Guias de Turismo da Bahia. As ocorrências de crimes no Abaeté começaram a se tornar um problema. E, desde aquele ano, guias de turismo tomaram a decisão. “Passou a existir uma sensação de insegurança. Levar um turista até lá se tornou um risco”, relembra.
De passagem por Itapuã para conhecer a nova orla, o casal Wanderley, 56, e Sandra Uzêda, 54, confirma que deixaram de frequentar o Abaeté após os comentários de insegurança. Decidiram levar a amiga, moradora de Feira de Santana, Ana Herrera, 48, com certo temor. “Apesar de ser um lugar que eu gosto muito, estamos aqui atentos”, diz Wanderley, pouco depois de pedir à filha, Vanessa, que guardasse os pertences no carro.
Os casos de violência foram mesmo frequentes no Abaeté durante meses, estima o delegado Antonio Carlos Magalhães Santos, titular da 12ª Delegacia, que atende a região.
“Nós tínhamos um elevado movimento lá. Fizemos investigações, na época, prendemos algumas pessoas”, diz, ao relembrar a tarde do dia 28 de março de 2017, quando ocorreu uma troca de tiros entre suspeitos e policiais da 15ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM/Itapuã).
O comerciante Januário Cerqueira Santos, 54, por exemplo, é um dos últimos moicanos do Abaeté. Ao lado dele está o restaurante administrado por Cláudio e Nilson Souza, pai e filho, com 26 anos no local. Os demais espaços não resistiram ao golpe da debandada dos turistas. Das oito lojas, três estão abertas – uma delas, de artesanato, abre apenas nos fins de semana. “Somos dois guerreiros”, declara Januário.
À frente de um dos quiosques, Bartolomeu de Jesus, 34 dos 69 anos dedicados ao negócio, se junta ao time. No dia em que conversou com a reportagem, vendeu um coco - R$ 4 - e duas águas - R$ 3 cada - em seis horas de trabalho. Ou seja, R$ 10 sem descontar os custos com os produtos.
Presidente da Associação de Comerciantes, Ambulantes e Baianas de Acarajé, Neucy Pereira trabalhou por mais de 20 anos no Abaeté com venda de cachorro-quente. Há três meses, migrou para o Colégio Rotary, próximo dali. Desde então, só vai ao parque aos sábados e domingos. “Eu vendia uns 500 cachorros-quentes por dia no domingo. Hoje, eu não vendo nem 50”, diz a vendedora.
“Eu vendia uns 500 cachorros-quentes por dia no domingo. Hoje, eu não vendo nem 50”, diz a vendedora.
Ontem e hoje
O ano de 1993 marca uma inversão na história do tradicional e místico ponto turístico de Salvador. Em setembro daquele ano, o local, no bairro de Itapuã, ganhou status de Parque Metropolitano e se tornou uma Área de Proteção Ambiental (APA), por iniciativa da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder). A intenção era conter a ação predatória do espaço de 12 mil metros quadrados e preservar as belezas naturais do perímetro.
Os turistas já frequentavam o bairro para conhecer as águas escuras cantadas por Dorival Caymmi. Na rotina de soteropolitanos e baianos, o veraneio em Itapuã já era sinônimo de Abaeté. A transformação em APA traz uma mudança que dinamiza o passeio ao espaço: o entorno da lagoa ganha um centro comercial com quiosques e lojas. O Parque do Abaeté é incluído, então, nas rotas de turismo. Não só: se torna um dos principais destinos turísticos da capital baiana.
Desde 2007, a debandada dos turistas e os registros de crime começam, no entanto, a estigmatizar o espaço, prejudicando as vendas.
“Na verdade, foi a imagem que ficou. Mas não é mais realidade não existe mais”, garante Januário, ao comentar crimes no Abaeté.
Os gestores do parque, no entanto, empregam a primeira mudança no esquema de segurança apenas em 2016, quando três quadricículos são usados para vistoriar o local. Hoje, a ala da segurança patrimonial tem 40 guardas – 14 à noite e 26 durante o dia. De acordo com a Polícia Militar, o Esquadrão de Polícia Montada emprega o efetivo de acordo com a demanda.
Também foram instaladas câmeras pela Secretaria da Segurança Pública (SSP-BA), mas a pasta não detalha, “por questões estratégicas”, quantos são os dispositivos. A área das dunas também é fiscalizada. Mas, segundo comerciantes e moradores, o grande temor de turistas e de pessoas que frequentam o local é justamente os espaços cobertos por vegetação, atrás da lagoa.
“Lá dentro, às vezes saem histórias. É melhor nem se arriscar, ficar por aqui, que tem policial”, relata um morador que prefere não ser identificado.
Quando cai a noite, lâmpadas quebradas de alguns postes dificultam a iluminação do Parque Metropolitano do Abaeté. A pouca visibilidade alimenta o medo de turistas e nativos que poderiam frequentar o ponto turístico, avaliam moradores e comerciantes. A luz começa a falhar logo na Ladeira do Abaeté, que dá acesso ao parque. O passo de quem, mesmo assim, transita pela rua é sempre apressado.
Na noite da última quarta-feira (24), às 19h30, a reportagem conseguiu falar com apenas uma moradora.
“A gente passa porque é morador, né? Mas quem vai querer vir aqui com tudo escuro?”, pergunta Lurdes de Jesus, 40.
O problema, segundo o Inema, já foi reportado à Prefeitura-Bairro de Itapuã, que não respondeu à reportagem. No centro comercial, as luzes funcionam para os parcos clientes.
O Parque do Abaeté está sendo reformado desde 5 de fevereiro deste ano, pela Conder, órgão do governo do estado, com investimento de R$ 2 milhões. A promessa é que as intervenções, que devem ser finalizadas em agosto, incluam, por exemplo, substituição de lonas e intervenções na pavimentação em pedra portuguesa.
A volta do turismo
Representantes do setor de Turismo planejam levar novamente os turistas ao Abaeté, enquanto a reforma do governo do estado não é finalizada. Os próprios visitantes questionaram a retirada do parque da rota, quando começaram a ser levados com mais frequência ao Centro Histórico e ao Rio Vermelho. Há seis meses, um grupo de 12 dos 18 hotéis da Costa de Itapuã, da Praia do Flamengo até Itapuã, relatou as queixas à Associação Brasileira da Indústria de Hotéis na Bahia (ABIH) e o setor começou a agir.
Os operadores estudam a criação de um projeto de retorno dos turistas.
“Então, o que podemos fazer? Decidimos que nós poderíamos pensar em soluções. A gente já perdeu muito tempo: está mais do que na hora de reconhecer a importância da Lagoa”, afirma a vice-presidente da associação, Renata Prosérpio.
No dia 14 de abril, apurou a reportagem, 15 representantes de agências de viagem fizeram um passeio entre o Farol de Itapuã e o Abaeté para planejar os próximos passos. Há 25 anos à frente da RNB Turismo, empresa de receptivo de turistas, Norma di Paolo acredita no retorno ao ponto turístico. “Nós pensamos, sim, em retornar. Desde que haja uma programação interessante, existam projetos para mostrarmos aos turistas. E segurança”, diz.
O principal projeto mapeado para atrair os visitantes é a Casa da Música, logo às margens da lagoa. Comandada por Amadeu Alves, diretor musical e produtor cultural há 11 dos 24 anos do espaço, é um lugar de resistência da cultura e tradição. A Casa da Música funciona de terça a domingo e realiza exposições temporárias, saraus e bate-papos musicados. O próximo evento, Itapuã Canta Caymmi, é uma homenagem ao artista que tanto exaltou o bairro e ocorre às 19h desta segunda-feira (30).
“O Abaeté é tesouro da cidade. Por que deixá-lo sem o devido tratamento?”, questiona ele. Amadeu reconhece os problemas que se põem à frente: “Enquanto parque, envelheceu rápido. Por que não serviu? Aí é uma interrogação”. Mas o clima é: “Vamos arregaçar as mangas e fazer”.
A lagoa dos mistérios
Na beira da lagoa escura, Maria Hermelina Paranhos Dias, 84 anos, passou boa parte dos seus dias. Lavava roupa ali mesmo, para casa e para fora, ao lado de amigas e vizinhas. Um tempo recordado com saudade. “A gente brincava, uma pregava a roupa da outra, cantava samba, músicas da época”, recorda. Em 1991, o ato é proibido com justificativa que os materiais de limpeza prejudicariam a lagoa. “Foi muito duro deixar aquilo ali, muito duro mesmo”, diz ela, que fez do Abaeté o quintal de sua casa, uma rotina desde os 15 anos.
Dona Mariinha, como é chamada, conhece muito da Lagoa. Sua beleza e mistério não saem da memória. Já viu muita gente se perder na escuridão dela para nunca mais voltar. E lembra o que, certa vez, lhe disse a avó:
“Cheguei e tinha uma moça, com os cabelos bem pretos, deitado no par da baleia, como se tomasse o sol. Quando me viu a moça, ela entrou”, conta Mariinha.
Diz a lenda que, na Lagoa do Abaeté, vive Janaína: sereia que sobe à superfície para atrair admiradores e levá-los para baixo.
Os casos de pessoas que desapareceram na Lagoa, explica o engenheiro sanitarista e diretor de Águas do Inema Eduardo Topázio, também podem ter uma explicação ambiental. “O material da areia é muito fino. Quando você pisa, pode existir uma falsa impressão de suporte. Aí, quando a pessoa não sente esse suporte, pode surgir o pânico, acontecer os afogamentos”, justifica. Os limites de segurança são definidos pela sabedoria popular. Mas, nos finais de semana, o Corpo de Bombeiros faz a vistoria dos banhistas.
A Lagoa sempre evocou respeito. Pelo misticismo, mas também pela imensidão – que, inclusive, parece ter deixado de possuir, segundo Dona Mariinha, nativos e ambientalistas. Topázio atribui parte da diminuição da lagoa à impermeabilização do entorno. As dunas do entorno, explica ele, servem para reter água da chuva e alimentar o lençol freático. A ação antrópica resultou na retirada de parte da areia das dunas do entorno, o que se mostrou um problema.
“Ela [a Lagoa] é 100% recarregada pela chuva. Por isso, em períodos chuvosos, o volume tende a subir”, relata Eduardo, que, na infância, se banhava no Abaeté.
Os relatórios da Unidunas, organização de preservação do ecossistema do Abaeté e de outras 11 lagoas perenes, já apontaram a diminuição do volume, conta o gestor Jorge Santana. Em 2014, o Ministério Público Federal (MPF) foi comunicado, mas nenhuma ação foi ajuizada. Agora, a “Unidunas quer abraçar o Abaeté". Buscamos desenvolver um projeto para ele, principalmente por essa vertente educacional e ambiental”, conta.
A Lagoa do Abaeté é colocada à prova do tempo e do homem. Mas, acima de tudo, está a sua força. Desde 2004, Dona Mariinha preside a Associação Cultural As Ganhadeiras de Itapuã. A iniciativa relembra os tempos da antiga Abaeté, com sambas e músicas da época das lavadeiras. É ela quem explica o poder da lagoa: “A força do Abaeté é a força da dona das águas. Alguém segura ela até hoje. Tem que ter alguém segurando. Tudo que Deus deixou existe. E para sempre existirá”.
*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier e da editora Mariana Rios
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Redação iBahia
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