Foi ainda na infância que Renildo Barbosa entendeu que algo nele não era como a sociedade esperava que fosse. Inteligente o suficiente para já saber ler, mas ainda muito jovem para entender sobre sexualidade, a partir dos 4 anos ele já sentia na pele a discriminação por ser gay e tinha o problema agravado pelo preconceito racial.
"Eu sempre me senti diferente em alguma coisa, até que eu tive consciência de que essa diferença era em relação ao meu afeto por pessoas da mesma orientação. Inclusive, afeto mesmo, porque criança não tem questão sexual. A minha questão era de me ver sendo o príncipe de outro príncipe e não o príncipe de uma princesa, como me contavam as histórias".
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Natural de Entre Rios, cidade do interior da Bahia localizada a cerca de 140 km de Salvador, o educador social encontrou orientação na capital, com o Grupo Gay da Bahia (GGB). Agora, coordenador do Centro de Promoção e Defesa dos Direitos LGBT da Bahia (CPDD-BA), ele ajuda outros integrantes da comunidade de todo o estado.
"Estou com essa missão maravilhosa de levar atividades, de levar direitos, de promover esses direitos, para atender pessoas que normalmente não têm a equidade garantida em várias questões, em vários seguimentos e políticas públicas".
Em entrevista ao Preta Bahia desta semana, em especial do Orgulho LGBTQIAPN+, Renildo relembrou a trajetória de superação, dividiu detalhes da relação com a família e falou sobre o trabalho que vem desenvolvendo com a equipe multidisciplinar do órgão, que é vinculado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia (SJDH) e executado pela Instituição Beneficente Conceição Macedo (IBCM).
"Estar hoje no CPDD é realizar sonhos, missões. Sonhos que não foram somente meus, não foram construídos somente por mim, mas por uma série de LGBTQIAPN+".
Trajetória
Criado pela mãe com os irmãos, Renildo conta que o preconceito e a discriminação sempre rodearam a vida dele, seja na infância, quando brincava com bonecas, ou depois, quando as questões da sexualidade passaram a ficar mais definidas durante a adolescência.
"Quando eu tive essa consciência, que eu entendi que a minha orientação era essa, eu procurei algumas questões, eu peguei um classificado e descobri que existia o Grupo Gay da Bahia (GGB) e mandei uma carta. Eles mandavam um envelope pardo, escondido, com outro nome, porque, na época, era um amor que ainda se escondia. Não podia dizer claramente".
O problema era tão grande que chegou a afastar o irmão dele. "O preconceito e a discriminação me afastaram do meu irmão, por exemplo. As pessoas não tinham nada do que reclamar dele, mas quando tinha qualquer problema, era: 'Seu irmão é gay, seu irmão é viado'. E isso acabou com que a gente tivesse um afastamento durante muito tempo. Por mais que eu sentisse um afeto e quisesse estar perto, mas ele, por causa desse preconceito, se afastava".
Para o educador social, situações como essa exemplificam um fator do passado que é uma realidade que afeta a maioria dos integrantes da comunidade. Quase sempre a sociedade identifica os indivíduos antes mesmo que eles tenham consciência para fazer isso.
"Eu nunca tive um chá revelação, um batizado, para contar assim para a família: 'Eu sou gay'. Eu sempre fui gay. E eu acho que isso estava sempre na cabeça das pessoas, tanto que era discriminado ou afastado dos outros primos por causa de já entender o que eu era".
No entanto, o preconceito não interferiu na relação com a mãe. Renildo conta que sempre foi próximo dela e que, até hoje, os dois mantêm um carinho e cuidado muito grandes.
"Nós sempre nos amamos, até hoje. Nós sempre fomos aquelas pessoas que se olham e entendem, inclusive quando nós não estamos próximos, o que cada um está sentindo"
O educador social relembra que a mãe sustentava a casa trabalhando como lavadeira, vendedora ambulante e catadora. Na época, ela contava com a ajuda dos filhos, que também já trabalhavam. Mas ele não romantiza a situação.
"Não é o melhor caminho. A gente precisa entender que o trabalho infantil tira da gente saúde, tempo e paz, que a gente precisa ter para formar a nossa personalidade. Então, não romantizo o trabalho infantojuvenil".
Renildo se mudou para Salvador em 1999, com 22 anos. Além da militância e das aulas, ele também já foi Rei Momo do carnaval de Salvador por três vezes: em 2014, 2019 e 2020, tendo dividido a coroa nos últimos dois anos.
Hoje, Renildo comemora ter chegado aos 46 anos, mesmo com o passado difícil para ele e para a comunidade LGBTQIAPN+, com as perseguições movidas pelo ódio. No entanto, reforça as dificuldades ainda enfrentadas, sobretudo diante de outros preconceitos.
"Quando a gente vive questões de ser gay, negro, afeminado, travesti ou transexual, você tem problemas maiores ainda. Isso não impede que a gente continue lutando, apesar de que muitas vezes tem sido angustiante".
Para o educador social, é importante tratar os fatores de forma cuidadosa, para que obstáculos de raça, gênero, sexualidade e afetividade sejam ultrapassados, sem que ocorram separações nos momentos de reivindicação.
"Alguns abismos são criados, inclusive por nós adquirirmos isso do opressor. Quando se coloca negros, mulheres, LGBT, a gente é uma massa muito maior do que brancos, héteros. Então, a gente precisa fazer essas fortalezas e essas reflexões, para que a gente possa deixar de ser menorizados"
CPDD
Renildo conta que o CPDD era uma reivindicação da causa LGBTQIAPN+ de 2008, quando ficou definida a necessidade de instituições como essas em todos os estados, durante a 1ª conferência nacional da causa.
"Foi instituído um tripé da cidadania. Todo estado e município deveria ter uma coordenação, um conselho e um centro de atendimento. Era algo que a gente já lutava muito".
Na Bahia, o órgão nasceu no primeiro semestre de 2021, no período mais crítico da pandemia. Inicialmente, o atendimento era feito exclusivamente de forma remota, mas passou a ser também presencial em maio do ano passado.
"Nós nos especializamos nesse atendimento remoto, tanto em Salvador e em todo o território estadual, porque pessoas LGBTQIAPN+ já viviam um isolamento desde que se entende por gente. A maioria da população experimentou isso agora na pandemia. Quando havia condições sanitárias, nós vivíamos o lockdown devido ao ódio, à violência".
A sede funciona no Casarão da Diversidade, no bairro do Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador, mas a ação atende a todo o estado. Além de assistência social, a equipe oferece ações em outras áreas, como psicologia e direito.
Entre os serviços disponíveis, estão cursos e palestras voltadas para a comunidade, encaminhamentos para hormonização e retificação de prenome e gênero. O contato é feito pela internet, telefone ou presencialmente.
"Nós temos uma equipe multidisciplinar, com advogados, pedagogos, psicólogas, assistentes sociais, técnicos, ativistas. Essa equipe tem o propósito de atender a sete ações, desde enfrentamento à violência, empregabilidade, cultura, educação, treinamento de gestores públicos e de organizações não governamentais...", explicou.
Alan Oliveira
Alan Oliveira
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