Uma simples e rotineira viagem de ônibus mudou a vida de Carlos Cruz para sempre em 2015. Depois de ser descoberto por um olheiro que estava no mesmo coletivo que ele, o jovem de Salvador se tornou modelo e conquistou sucesso internacional com o trabalho. Agora, o baiano é referência nacional e vem atuando também como diretor de casting em projetos com protagonismo preto.
"Você tem que fazer tudo que ama com propósito. A minha carreira sempre foi pautada por questões raciais. Eu sempre levei minha carreira como política de inclusão. E eu sempre que o menino da minha periferia pudesse entender que, além de tudo isso que é oferecido mundo, ele tem um outro caminho a poder seguir".
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Nascido e criado na comunidade da Fonte do Capim, na capital, Carlos estava a caminho do trabalho que tinha na época, quando foi apresentado ao mundo da moda. A abordagem foi feita pelo produtor Sivaldo Tavares, que é responsável por uma das principais agências de modelos da cidade, e que viu futuro nele, apesar da resistência inicial do modelo por não acreditar no potencial que tinha.
"O jovem preto de periferia, acho que um dos primeiros fatores que acomete ele é o racismo. E dentro da escola é algo que nos acomete de uma maneira muito grave. Eu na escola sempre era chamado de macaco, sempre tinha algo que me doía muito. Então, eu não me via como bonito. Ele plantou esse sonho dentro do meu coração. E daí eu aceitei fazer umas fotos com ele", lembra.
Da primeira experiência, surgiu o amor pela profissão e a vontade de investir na carreira como principal fonte de renda. "Quando as fotos saíram, meu primeiro amor pela moda partiu dali. Eu vi as fotos e fiquei encantado. E eu falei: 'É isso que eu quero para a minha vida'. Meu coração nunca pulsou tanto. Eu me apaixonei por aquilo ali".
Carlos deixou a área de contabilidade para seguir o sonho que tinha acabado de descobrir. Na época, encontrou resistência da família, em especial da avó paterna, que foi presente na criação e se tornou principal referência para o jovem. "Para minha avó o estudo era crucial. Ela queria muito que eu me formasse em algo e tivesse carteira assinada. Então, me desvincular disso tudo para viver da arte foi meio um choque".
Além da mudança drástica de carreira, a falta de representatividade também era uma barreira para o baiano, mas isso não o segurou. "Eles não tinham referência de quem deu certo nisso. Até eu mesmo me achava doido, porque quando eu buscava referências de pessoas pretas que fizeram sucesso com moda eu não encontrava. Nesse período era muito mais difícil".
Carlos se mudou para São Paulo cerca de dois anos depois do começo como modelo, em busca do sucesso. De lá, ele partiu para Inglaterra, Itália e Índia. Entre o Brasil e o exterior, foram anos de especializações, experiências e trabalhos com marcas famosas e importantes, como Banco do Brasil, Samsung, Puma, Xiaomi e Nestlé, entre outras.
Aos poucos o baiano foi mostrando para a família e para ele mesmo que o sonho era possível. Carlos lembra que um dos trabalhos mais marcantes foi uma campanha para o Governo da Bahia, quando esteve em destaque em outdoors espalhados por Salvador. A visibilidade e o reconhecimento encheram de orgulho a avó do modelo, que morreu em 2019, mas acompanhou a fama do neto.
"Foi uma das últimas vitórias da minha avó antes de morrer. Ela ouviu muito as pessoas comentando: 'Eu vi seu neto'. E ela já estava muito feliz porque eu já tinha alcançado um patamar aqui em Salvador que as pessoas demorassem talvez 15 anos para alcançar. Eu creio que as minhas vitórias vieram muito rápidas para eu mostrar a minha avó que meu sonho era possível", lembrou emocionado.
Diante do espaço que alcançou e consciente das dificuldades, o modelo agora usa o nome que construiu para dar espaço para outros jovens negros. Recentemente, ele levou para Salvador um projeto do renomado fotógrafo de moda Glauber Bassi.
Inicialmente, o profissional tinha São Paulo como local de produção do trabalho, mas foi convencido pelo baiano a migrar para a cidade considerada a mais negra fora da África.
"Eu disse: 'Em Salvador, a gente tem um processo de desigualdade muito grande. O preto às vezes não tem acesso e nem condições financeiras de pagar por um material e um book. Como você é um fotógrafo muito conhecido, eu acho que isso vai agregar muito'".
Intitulado Black Soul, ou alma negra na tradução, o projeto reuniu mais de 70 modelos em pontos turísticos como a Praia da Gamboa, a Feira de São Joaquim e o Pelourinho, com direção artística de Carlos. A exposição foi feita em uma galeria de São Paulo, com elementos da cultura baiana, e ganhou espaço também no site da Vogue.
Para além disso, no ano passado, o baiano ainda dirigiu o desfile da marca Meninos Rei na São Paulo Fashion Week - que é um dos principais eventos de moda do Brasil. No elenco de modelos, cerca de 80% eram negros, detalhou Carlos durante a entrevista. O baiano se intitula como o único diretor de casting preto da capital paulista e explicou como surgiu a vontade de também atuar nessa área.
"Eu batia muito a cabeça com o sistema e usava minha voz para poder debater. Só que eu percebi que muitas vezes eu estava tomando um lugar que as pessoas estavam deixando de me contratar por isso. E eu percebi que eu precisava fazer a diferença de uma forma inteligente. Se eu produzir, eu consigo colocar o negro em um espaço em que eu tanto briguei, que eu tanto reivindiquei", avaliou.
Aos 27 anos, Carlos comemora e agradece à moda pelas conquistas. "Hoje eu sou um menino que tem uma casa muito linda, que eu construí da maneira que eu quis. Eu sou uma pessoa que não sustenta só a mim, mas também a outras pessoas. Ajudo a minha família no que eu posso fazer, sendo que eu sou o mais novo", contou.
"A moda me deu tudo o que eu sempre sonhei. A gente que vem de periferia, a gente não tem perspectiva nenhuma de conhecer outro país. Com a moda, eu conheci outro país. Em 5 anos, eu consegui conquistar 50 anos à frente. Isso para mim é muito gratificante", completou.
Sem deixar as oportunidades que teve de lado, o baiano considera as metas e cobranças que ele mesmo estabeleceu como o principal caminho para o sucesso atual. "Eu sei o que eu passei para passar por tudo isso. Eu sou um em um milhão. Eu conheço modelos iguais a mim e melhores e pessoas com muito potencial para estar aqui e não estão".
"Eu acho que um dos principais fatores de ter alcançado e chegado até aqui foi essa certeza que eu tinha de que iria dar certo. Eu não fico surpreso com o que eu conquistei, porque eu sabia que eu iria chegar. Eu sabia que iria ser duro o processo", completou.
E, nesse local de representatividade, Carlos orienta o processo para outros que sonham com um futuro bem-sucedido na moda, assim como o dele. "A gente é fruto dos nossos sonhos. Se você sonha alto, se acredita que vai dar certo, tenha fé e sabedoria, que vai dar".
"Eu sou muito feliz de ter chegado onde eu cheguei, em ter conquistado o que eu conquistei, em ser quem eu sou, em ser quem eu sou para minha família também, porque eu acho que você começa a ser referência na sua casa para depois ser fora dela. E você não pode esquecer disso", completou.
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Alan Oliveira
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