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PRETA BAHIA

Lívia Sant’Anna Vaz: 'Me sinto cumprindo uma missão ancestral', diz promotora baiana que é referência mundial no combate ao racismo

Vítima de preconceito quando criança, jurista iniciou formação após conselho do pai e hoje atua em promotoria cujo trabalho inspirou a criação de outras no Brasil

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Alan Oliveira

30/07/2022 às 8:00 • Atualizada em 26/08/2022 às 23:05 - há XX semanas
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					Lívia Sant’Anna Vaz: 'Me sinto cumprindo uma missão ancestral', diz promotora baiana que é referência mundial no combate ao racismo
Foto: Divulgação

Quando se viu no momento de definir a carreira que seguiria na vida adulta, a Lívia Sant’Anna Vaz adolescente sonhou em ser jornalista, mas foi na área jurídica que se realizou e encontrou meios de combater um mal que conheceu de muito perto: o racismo.

A entrada no curso de direito aconteceu depois de um conselho do pai, que a chamou para conversar quando ela tinha 16 anos, lembra Lívia. Na época, muito mais que atualmente, a presença negra era escassa nos meios. E essa foi uma das argumentações para a escolha da carreira.

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Em entrevista ao especial Preta Bahia desta semana, Lívia contou que ouviu do pai a realidade de uma forma nua e crua, quando contou que queria cursar jornalismo. "Ele me respondeu com uma pergunta: 'Você já viu alguma jornalista negra na televisão?'".

Naquela época, segundo traz a promotora, havia referências sim, mas era uma ou até duas profissionais atuando, em meio a dezenas de outras pessoas. A fala do pai levantou uma problemática, que anos depois se explicou por conta própria.

"Essa pergunta me assustou naquele momento. Me jogou um banho de água fria. E ele, naquele momento, me sugeriu que eu seguisse a carreira jurídica. Eu sempre comento que naquele momento ele estava me dando uma orientação ancestral que nem ele sabia", conta.

Se no jornalismo a representatividade era fraca, no meio jurídico não era diferente, mas a área seria o local onde Lívia encontraria espaço para mudar as coisas e ajudar as pessoas. Tudo com a argumentação e a indignação com a injustiça.


				
					Lívia Sant’Anna Vaz: 'Me sinto cumprindo uma missão ancestral', diz promotora baiana que é referência mundial no combate ao racismo
Foto: Reprodução/Instagram

Coisas que começaram a se apresentar na promotora quando ela ainda era criança e recebia broncas ao lado dos dois irmãos. Lívia lembra que o irmão mais velho sempre ficava calado e a irmã chorava. Cabia a ela, a caçula da família, contra-argumentar as situações levantadas pela mãe.

O talento foi levado em conta junto com as palavras do pai, mas não impediram que Lívia cursasse comunicação social na mesma época que direito. Ela só não atuou na área.

A promotora se formou em 2003, e, no ano seguinte, ingressou no Ministério Público da Bahia (MP-BA). Desde então, atuou em diversas cidades, chegando a passar 9 anos no interior do estado. Mas, depois retornou para Salvador, sua cidade natal.

Chegando na capital, Lívia passou a integrar a Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo - grupo que foi pioneiro na atuação no Brasil e inspirou outros MPs em todo o país. Foi nessa frente que a baiana passou a desenvolver ainda mais o seu trabalho.

"Hoje eu me sinto ocupando exatamente o espaço que eu preciso ocupar, mas não como negra única. Nunca fez sentido e continua fazendo agora menos ainda ser negra única nos espaços. Nós, pessoas negras, mulheres negras em especial, precisamos ocupar esses espaços e trazer o nosso coletivo, e retornar ao nosso povo aquilo que conseguimos construir. Não faz sentido construir individualmente", falou.

Hoje, realizada com o que faz e considerada uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, Lívia conta que está em uma missão que depende dela, mas que vem de muito antes dela nascer e que vai continuar infinitamente.

"Me sinto hoje cumprindo uma missão ancestral, que é uma missão de continuar abrindo caminhos para as que virão. Se eu estou aqui hoje é porque muitas mulheres negras antes de mim possibilitaram a minha existência, minha sobrevivência".

Surpresa agradável


				
					Lívia Sant’Anna Vaz: 'Me sinto cumprindo uma missão ancestral', diz promotora baiana que é referência mundial no combate ao racismo
Foto: Reprodução/Instagram

Mesmo assim, Lívia conta que ainda encontra muitas barreiras em seu caminho. Como mulher preta, o fato de ser promotora não a livra de ser vítima daquilo que trabalha todos os dias para combater.

"Ninguém fica protegido ou protegida por uma toga, por um jaleco. O racismo faz com que a gente esteja vivenciando essas discriminações, esses estereótipos, esse julgamento por parte da sociedade, o tempo inteiro. Eu sempre digo que eu sou não uma promotora de Justiça negra, mas uma mulher negra promotora de Justiça. Mulher negra vem na frente, porque é o que se enxerga, é o que se vê", conta.

Mas também se tornou acalanto para quem procura o serviço da Promotoria. Lívia conta que atuando no local deixou de ser um "corpo estranho", para ser uma "surpresa agradável". E ela explica:

"Eu tenho agora 17 anos de Ministério Público e eu ainda, vez ou outra, preciso ainda responder à pergunta: 'Cadê a promotora de Justiça?'. E eu tenho dito que um dos efeitos mais perversos do racismo é a naturalização de ausência. É natural que não tenha mulheres negras no espaço de poder como esse. Então, havia e ainda há um estranhamento quando as pessoas se deparam comigo na condição de promotora de Justiça".

"Esse estranhamento, na medida que eu começo a trabalhar no combate ao racismo, vai virando uma surpresa positiva, porque eu passo a atender majoritariamente pessoas negras vítimas de racismo e de racismo religioso. Quando essas pessoas se deparam comigo, com a minha figura, com o meu acolhimento, a reação é: 'Ah, que bom que serei atendido ou atendida por você'. No sentido de que essa pessoa que está do outro lado da mesa terá a capacidade de compreender o que eu passo, o que eu sofro", completa.

Essa representatividade a promotora ressalta no dia a dia, como conta. "Quando nós usamos turbantes, blacks, tranças, búzios… isso não é enfeite e também não é meramente estética. É estética, mas é uma estética que fala. É algo que assume uma identidade. É uma linguagem. Então, nos espaços que nós estamos e ocupamos, e que muitas vezes não temos voz, nosso corpo já fala. Essa presença é por si só uma presença pedagógica e revolucionária".

Racismo na infância


				
					Lívia Sant’Anna Vaz: 'Me sinto cumprindo uma missão ancestral', diz promotora baiana que é referência mundial no combate ao racismo
Foto: Reprodução/Instagram

Ainda criança, quando não entendia o que era o preconceito, Lívia foi exposta a ele na escola. A promotora conta que até então tinha a experiência do ambiente familiar, onde todos são negros. Mas, na unidade de ensino, que era particular e majoritariamente frequentada por brancos, a fixa da identidade negra caiu, só que não com positividade, como deveria ser.

"As crianças negras sofrem muito sem saber nominar. Eu não sabia nominar. Eu não sabia que era racismo. Existe um poema cantado de Victoria Santa Cruz, que vai falar: 'Gritaram-me negra'. Eu posso dizer isso. Gritaram-me negra antes de eu saber que era negra. Eu cheguei até a apanhar por conta disso. Apanhar ouvindo que 'neguinho aguenta'", relata.

O assunto preocupa muito a promotora, que é mãe de duas meninas, sendo uma de 2 e a outra de 10 anos. Com base nisso, Lívia levanta a discussão sobre o bullying, que muitas vezes é usado para disfarçar o racismo nessas relações, e critica.

"Muitas pessoas dizem até hoje que é bullying. Não é bullying. Bullying é bullying. Racismo é um fenômeno muito mais grave, muito mais opressor. E muitas pessoas adoecem por causa do racismo, porque não é algo pontual. É algo cotidiano. As crianças em uma sociedade tão racista como a nossa, elas sofrem com um sentimento de autorrejeição. São adolescentes que vão crescendo e formando sua identidade de negação. Negando sua identidade negra. Até que se possa assumir com orgulho a sua identidade, é um processo doloroso", conta.

O processo de construção dessa identidade é relacionado por Lívia com o livro “A Justiça é uma Mulher Negra”, lançado nesta semana em parceria com a procuradora federal Chiara Ramos. Na obra, as duas evidenciam a importância da cultura negra.

"Tornar-se negra dói, e dói efetivamente. Mas é libertador. Se eu pudesse mil vezes escolher entre me tornar negra ou não, eu escolheria me tornar negra, com toda a dor que isso traz. Porque quando você se torna negro, se torna negra, como diz a psicóloga Neusa Souza, é uma compreensão. Cai a ficha de muita coisa que te aconteceu no passado e que te acontece atualmente, e que você não sabia nominar", contou.

Durante a entrevista, a promotora aproveitou também para reforçar a importância de se ter essa noção. A importância do letramento racial.

"É muito importante que a gente busque letramento racial e antirracista. Porque não basta você fazer leituras teóricas sobre relações étnico-raciais, sobre a história do Brasil, sobre a presença negra nessa história, se você não tem a capacidade de aplicar esse conhecimento ao mundo. Então, é preciso colocar lentes antirracistas para entender, por exemplo, que no Brasil, mesmo 134 anos após a Lei Áurea, o fator raça segue sendo o principal determinante da desigualdade", falou.


				
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Foto: Reprodução/Instagram

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