O ator e afrochefe Jorge Washington tem 58 anos, mas foi aos 20 que iniciou sua carreira no teatro. Nascido e criado no bairro da Liberdade, que é um dos mais populares de Salvador, ele sempre teve contato com o que define como criatividade comunitária, porém, na época, fazer arte não era um sonho e nem aconteceu de forma planejada. Faltava referência.
"Não bateu assim: Ah eu tenho um sonho de ser ator'. Até porque a gente não tinha referência, né? A gente não se via naquele lugar, de atuar, de ser ator, de ser atriz. E aí surgiu para mim como um acaso mesmo do destino, e eu abracei com unhas e dentes. E por isso estou aqui até hoje, na resistência", contou Jorge.
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O amor pelos palcos veio "à primeira assistida". Em entrevista ao especial Preta Bahia desta semana, o artista contou que tudo começou depois que passou a acompanhar o Grupo de Teatro Calabar, que já não existe mais. E foi com a desistência de um dos integrantes que acabou recebendo um convite para atuar. O ano era 1984, lembra Jorge, e ele ficou com o grupo até 1987, quando os integrantes decidiram se separar.
Depois disso, o jovem que havia se tornado ator se especializou, e, 3 anos depois, surgiu a oportunidade de fazer um teste para o grupo que mudaria de vez a sua vida, e que estaria com ele nas próximas três décadas: o Bando de Teatro Olodum. Companhia que estava surgindo em Salvador com uma proposta diferente, mas que não tinha, na época, a pretensão de se tornar referência, como se tornou.
Jorge Washington entrou junto com os primeiros integrantes e, ao longo desses quase 32 anos de atuação, ajudou a produzir e executou diversas obras, e trabalhou ao lado de muitos artistas.
Um grupo assumidamente negro, fruto de uma parceria entre o diretor Marcio Meirelles e o Grupo Cultural Olodum, que sempre manteve em suas obras discussões contemporâneas, trazendo problemas que estiveram e que continuam presentes na sociedade, como o racismo.
"A gente começa a falar dessas questões com uma força, com uma garra, com o poder de conseguir botar nas pessoas uma reflexão. A performance negra que pensa a partir desse lugar de que a arte é espaço de transformação, de que a arte é espaço também de questionamento. Falando de coisas, questionando coisas, questionando esse racismo que é cruel no Brasil, que mata, que tem matado muita gente, essa homofobia que tem matado muita gente, esse machismo, essa violência doméstica, que tem matado muita gente. Eu acho que a arte é um grande elemento que pode levar à consciência, levar as pessoas a fazer uma reflexão e fazer uma mudança de postura", ressalta Jorge.
Proposta essa que ajudou a fortalecer a companhia e que mudou a vida de muitas pessoas que, assim como Jorge, ganharam o Brasil e o mundo após a vivência no Bando. Entre eles, Lázaro Ramos, Valdineia Soriano, Guilherme Silva e Lucas Leto.
"São atores que passaram pelo Bando de Teatro Olodum e que continuam no Bando de Teatro Olodum, fazendo esse trabalho, dando essa demonstração de quanto a arte é potente, de quanto a arte transforma as vidas. O que eu aprendi ao longo desses 32 anos com a arte do Bando de Teatro Olodum eu tenho que repassar. Eu tenho que fazer com que se renove, e que, com essa energia, vá se renovando, que o Bando dure 100 anos. Eu não posso guardar para mim. Não é essa a premissa do Bando. Nunca foi e nunca vai ser", conta.
Ao longo dos anos, a atuação gerou conquistas para o Bando, como o Prêmio Braskem de Teatro de melhor espetáculo adulto de 2006, e também o de Cidadania em Respeito à Diversidade, promovido pela Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo (APOGLBT), de 2010.
"Hoje eu digo que está mais fácil, mas não é mais fácil. Hoje, a gente consegue penetrar com mais força, porque o advento das redes sociais também nos apoia muito nesse sentido. As redes sociais reverberam a nossa voz com uma força que não tem mais como controlar. Antes, você tinha um controle porque se a grande mídia não queria gerar a notícia, não gerava notícia e a gente ficava lá fazendo pros mesmos. Hoje, com as redes sociais, a gente consegue levar o nosso trabalho com muito mais força para para outro lugares".
'Ó Paí, Ó 2' potente
No currículo, o ator traz participações em obras como “Essa É Nossa Praia”, que fala sobre intolerância religiosa, ideologia do branqueamento e marginalidade; e “Cabaré da Rrrrrraça”, que levou para o teatro discussões sobre negritude.
Mas o ponto alto do Bando fica com "Ó Paí, Ó", que foi lançado em 2007, e depois se tornou série na TV Globo. Agora, 15 anos depois, a parte dois do longa está em processo de produção, e a expectativa de Jorge é de que ele chegue aos cinemas no primeiro semestre do ano que vem.
Abordando ainda mais as diversas discussões que trouxe nos anos 2000, como a intolerância religiosa, a homofobia, a transfobia, a pobreza e a violência, o filme terá um roteiro potente, garante Jorge.
"Vai vir potente porque a gente está mais experiente. A gente já tem a experiência desse primeiro, que é sucesso até hoje. Eu sou abordado na rua toda hora e as pessoas sabem o texto todo do filme. O filme tem 15 anos e as pessoas falam do filme como se fosse ontem. É incrível. Então, a gente tem toda essa experiência e tem toda essa bagagem. Por isso que o roteiro está sendo mitigado. Vai e volta. A gente se reúne com toda a equipe aí mostra os pontos que são frágeis. Então, vai vir um Ó Paí Ó potente, com novas histórias", revelou.
Culinária Musical
Para além dos palcos, mas seguindo a mesma perspectiva, há 5 anos Jorge Washington desenvolve o projeto Culinária Musical. Além de cozinhar, ele traz nas edições do evento apresentações artísticas, como música e teatro. No entanto, o carro chefe continua sendo a cozinha afetiva.
O desejo de criar o trabalho partiu do prazer em cozinhar e servir seus pratos para os amigos e familiares. Ao iBahia, o ator contou que sempre gostou de cozinhar e que se dividia entre os outros 9 irmãos na tarefa, quando era mais jovem e ainda morava com a família.
Filho de pai policial civil, que atuava também como motorista de ônibus para pagar as contas da família grande, e de mãe dona de casa, Jorge Washington assumiu o fogão diversas vezes, como conta:
"Eu sempre cozinhei. Desde criança, eu sempre ajudei minha mãe na cozinha. Eu sempre fui essa pessoa que ajudou em casa, que assumiu a cozinha em alguns momentos, apesar de ter quatro irmãs… e a gente tem essa coisa de que quando tem mulher homem não entra na cozinha… lá em casa não tinha disso. Nunca teve e eu sempre entrei na cozinha, sempre cozinhei. E até hoje é assim, quando a gente se junta em casa para cozinhar".
Tudo surgiu em um espaço cultural que era de uma irmã que faleceu. Inicialmente, a ideia era cozinhar, servir e ter um grupo que tocasse em seu repertório clássicos do samba. No entanto, a coisa cresceu e, atualmente, ele também trabalha com a black music, com o reggae e outros estilos musicais.
"Foi a partir desse lugar, de comer e fazer as pessoas felizes, que eu resolvi juntar as coisas. Eu sempre gostei de festa, sempre gostei de um bom papo, sempre gostei de uma boa música. E aí eu digo: 'Pô, velho, eu vou criar uma parada que vai ser isso aqui'", contou.
Por meio do projeto, Jorge busca também dar visibilidade a artistas poucos conhecidos. "O Culinária tem sido espaço de lançamento de novos artistas, dando visibilidade pra artistas que muitas vezes não tem alcance, e eu tenho feito essa troca. Digo que é uma oportunidade. Tenho feito essa troca", falou.
Neste domingo (7), há uma edição evento. O projeto abre as portas para o público na Casa do Benin, que fica localizado no Pelourinnho, no centro histórico de Salvador. No cardápio, roupa velha. Entre as apresentações, a cantora Gal do Beco e a drag queen Petra Peron.
Parar pra quê?
Questionado se pensa em parar, o ator diz que não se vê fazendo outras coisas que não sejam cozinhar e atuar. Nos planos para o futuro, não há espaço para aposentadoria ainda.
"Eu não consigo [parar]. Quando eu estou no ensaio, quando eu estou criando, quando eu estou em uma reunião, eu remorso a cada ensaio, a cada troca com meus colegas, eu remorso, e o teatro me apoia no Culinária Musical, enquanto afrochefe, e o afrochefe me apoia no meu trabalho no Olodum".
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