Foi em um momento em que o distanciamento se fez necessário que a afrochef baiana Paloma Zahir passou a unir culinária, afetividade e ancestralidade. Uma conexão que tem gerado frutos não só para ela, como também para quem conhece e prova o trabalho do buffet Kissanga.
Idealizado e executado por Paloma, que também é produtora cultural, o projeto impulsiona o legado ancestral a partir de pesquisas desenvolvidas pela baiana nos últimos dois anos. Tudo com o objetivo de valorizar e resgatar a cultura preta.
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"Eu comecei a fazer a pesquisa sobre a história dos pratos, mas eu percebi que não era um caminho direto. Eu precisei voltar para entender a história da África, entender o Brasil no período colonial, entender de onde vieram essas pessoas que foram escravizadas, entender os processos de técnicas que eles tinham lá e que a gente hoje continua reproduzindo".
O processo a afrochef explica que começou em março de 2020, quando a pandemia da Covid-19 esteve no momento mais crítico no Brasil. Paloma sempre foi conectada com a culinária, mas, na época, atuava na área de eventos, que foi um dos primeiros setores a parar. Diante disso, voltou a ter a cozinha como principal fonte de renda.
"Estava todo mundo sem poder ver mãe, avó, era Semana Santa, pediram para eu começar a vender o caruru, o vatapá, que foi quando nasceu a ideia do Kissanga. Já era uma ideia que estava escrita, mas a longo prazo".
Movida pelos pedidos de amigos, a baiana resolveu pular de cabeça no projeto e, a partir daí, passou a pesquisar sobre os ingredientes, as receitas e as técnicas que foram perdidas ao longo dos anos, como explica.
"Práticas dos nossos ancestrais, nossos avós, bisavós, foram tiradas da mesa. Acho que por conta também da revolução industrial, da mercantilização, e também do projeto colonial, que sempre coloca os saberes e os gostos das pessoas pretas como algo diminutivo. Eu começo a vir no caminho contrário. Eu não quero trazer inovação, eu vou trazer o que foi tirado da mesa e mostrar que é importante".
"Até então, eu não tinha a consciência da importância da pesquisa. Eu começo a ver esse processo quando eu começo a ver a importância de contar a história do ingrediente, do prato. Então, não era algo que eu tinha o intuito, mas foi algo que aconteceu e que eu comecei a entender a importância do movimento", completou.
Segundo a afrochef, essa era uma área que, naquele momento, não tinha propulsores. "Eu comecei a pesquisar sobre as comidas ancestrais, a ficar mais imersa nesse universo, e perceber que era uma área que ninguém estava dialogando".
Nesse processo de descobrimento, Paloma passou a entender também a função social dela e da mãe, que sempre foi uma inspiração, por ser a pessoa que a inseriu na culinária.
"Aí, eu entendo e descubro a existência das pretas de ganho; faço a conexão de que minha mãe é uma preta de ganho, que sempre mercou; vejo essa questão da ancestralidade; e começo a ver com outro olhar aquela função que sempre existiu na minha casa".
Nascida e criada no Curuzu, sede do primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê, Paloma via a mãe seguir para o bairro da Liberdade, que é vizinho, para vender salgados, além de atender a pedidos por encomenda.
"A cozinha sempre colocou dinheiro na minha casa, sempre custeou meus estudos e tudo. Só que eu não conseguia enxergar essa potência. Eu não tinha a percepção que eu tenho hoje desse ofício".
Foi ainda criança que a baiana começou a cozinhar. Embasada pelo que via a mãe produzir, pelo incentivo que recebia e pelos programas de culinária que assistia, ela passou a fazer algumas receitas aos 9 anos. No início, ela cozinhava escondida da mãe, e encontrava cumplicidade no pai.
"As receitas mais fáceis, com os ingredientes que eu tinha em casa, eu fazia correndo e escondia até o horário de meu pai chegar. Aí ele comia escondido, para ela não ver. Mas ela via porque ela sentia falta, sabia a quantidade dos ingredientes e começava a questionar. Ela reclamava, mas de uma forma ela gostava".
Apoio que passou a ser demonstrado mais abertamente com o passar do tempo, quando foi recebendo funções para ajudar a mãe no trabalho, como separar ingredientes, entre outras coisas.
"Desde muito cedo ela me incentivava muito a fazer o meu caderno de receitas. Então, eu pegava as revistas que tinham receitas e ia passando a limpo. E separava receitas que eu queria fazer. Nessa época de Natal mesmo, eu separava várias, mas não fazia nada. Mas ficava naquela coisa do mundo lúdico".
Até hoje, a baiana e a mãe mantêm esse laço criado na culinária. Quando uma precisa de ajuda na cozinha, a outra está ali pronta para entrar em ação. Atualmente, as duas moram no bairro de Itapuã, sempre perto.
"A gente ainda tem essa troca de receitas. Quando dá, a gente trabalha junto. Se possível, dou um help para ela, quando tem muita encomenda, muita demanda. Ela já direciona para mim. E aí, uma vai ajudando a outra, e ela também vai me ajudando".
Diante dos resultados da pesquisa, Paloma comemora. A baiana conta que entende o trabalho não somente como a entrega de comida, mas também como oferecimento de conexões afetivas e ancestrais a partir dos pratos que produz.
"Eu encaro isso como um presente muito grande, poder sobreviver disso, de sobreviver disso, de ganhar dinheiro a partir dessa troca, de sentir que o meu trabalho está sendo valorizado e que, ao mesmo tempo, eu estou contribuindo para a parte cultural e histórica dos meus ancestrais, que, naquela época, não tiveram a oportunidade de deixar sua cultura impressa, catalogada. É um presente eu poder estar vivenciando isso, estar sendo reconhecida pelas pessoas, vendo o meu trabalho sendo reconhecido e valorizado, e poder deixar meu trabalho todo catalogado".
Foi partindo dessa atuação que Paloma foi convidada para integrar o grupo de quatro afrochefs que participaram do AFROPUNK Bahia 2022 - evento que reuniu centenas de pessoas no Parque de Exposições da Bahia, em Salvador, no último fim de semana.
Em um trabalho colaborativo, cada um deles entregou um prato diferente para o público. Para a ocasião, a baiana selecionou Dengo de kissanga: bolinho crocante à base de mandioca, recheado com mocotó e carnes defumadas, servido com um apimentado e aromático molho lambão.
Durante a entrevista, a afrochef comentou como foi para ela participar do evento. "Passou um filme na minha cabeça, porque uma mulher preta, que veio da periferia, do Curuzu, que quase ninguém dava nada, chegar no maior festival de cultura preta do mundo para poder compartilhar sobre sua comida, que é uma comida de rua, é algo muito potente. Eu falei: 'cara, que responsabilidade'"
Agora, Paloma pensa e investe no sonho de transformar o buffet em um restaurante aberto para receber os clientes e estreitar as relações. A expectativa é de que essa parte do projeto se torne realidade a partir de 2023.
"Tem um pedido muito grande das pessoas e uma vontade muito grande minha também, porque eu gosto de ver quem está comprando minha comida, de fazer a resenha, de conversar. Não é só a gente entregar comida. É a troca".
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Alan Oliveira
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