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Herança e autoestima

'A trança une': trancistas falam sobre poder de resgate da profissão

Kenia Morais e Rebeca Xaviar se tornaram trancistas desde adolescentes e contam mais sobre como a atuação vai para além do empreendimento

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Iamany Santos

22/06/2024 às 10:27 - há XX semanas
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As roupas, os cabelos, os traços culturais e comportamentais são aspectos preciosos para os descendentes de um grupo. Esses aspectos, tão essenciais, sempre foram negativados em pessoas negras, que convivem com o peso histórico e estrutural do racismo. Apesar disso, um movimento de autoafirmação e resistência sempre permeou as comunidades negras, que mantiveram as tradições vivas, entre elas, as tranças.

As trancistas Kenia Morais e Rebeca Xavier começaram a trançar cabelos como muitas mulheres negras: através das mãos da família, com as mães e tias. Passada de geração em geração, a atuação como trancista sobreviveu por meio da resistência da ancestralidade e, até hoje, é um caminho para o resgate da autoestima e dos valores do povo negro no Brasil e no mundo.

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					'A trança une': trancistas falam sobre poder de resgate da profissão
As trancistas Rebeca Xavier e Kenia Morais (da esquerda para a direita) falaram sobre o trabalho da trancista em entrevista ao iBahia. Foto: iBahia

Esse poder de transformação está na ponta dos dedos das duas trancistas, que veem a mudança acontecer nos olhos de cada cliente. "Gosto que o cliente chegue se sentindo de um jeito no estúdio, a gente troque experiências, e ele saia se sentindo de outra forma", conta Kenia, empreendedora e dona do estúdio Irun Ona, localizado no bairro de Brotas, em Salvador.

Vídeo: Arquivo pessoal

Inicialmente, trançar era só um passatempo, mas Kenia passou a fazer tranças através das amigas como forma de conseguir renda. Ao perceber o potencial da área, e do próprio talento, a trancista passou a investir no negócio e atualmente se mantém com esse trabalho.

A jornada de Rebeca foi parecida. Mãe aos 19 anos, ela e o marido tinham um grande desafio pela frente e a necessidade fez com que transformasse o passatempo em renda. Atualmente, a empresária gere a marca Trancista Raiz ao lado do marido e já possui dois estúdios em Salvador, no bairro da Pituba e na Suburbana.

"Eu não me arrependo de nada e hoje posso contar delícias, [apesar] de antes não ver como uma profissão. Mas hoje eu posso mostrar o que conquistei através das tranças. Eu tenho orgulho", relata Rebeca, que pontua como ter a possibilidade de construir carreira como trancista é uma das grandes viradas na forma como o trabalho vem sendo observado.


				
					'A trança une': trancistas falam sobre poder de resgate da profissão
Atualmente Rebeca gerencia, ao lado do marido, dois estúdios. Além disso, a trancista também da aulas e possui um curso profissionalizante. Foto: Arquivo Pessoal
Vídeo: Arquivo pessoal

"É libertador, porque você é quem você é. Não [há necessidade] de mostrar o que você não é ou viver o que você não, ou não vive. Eu não preciso viver uma mentira. Sou trancista, vivo das tranças, hoje meu esposo trabalha comigo e [estamos] conquistando nossas coisas", pontua ela.

Trancistas falam das tranças como autocuidado

As tranças não transformam somente a vida de quem realiza o trabalho e com o poder de resgate consegue curar antigas feridas nas clientes também. O reencontro da autoestima e a reconexão consigo mesmo são aspectos subjetivos das traças para muitas pessoas negras, cuja autoimagem é afetada pelo racismo desde muito cedo.

"A trança une, a gente compartilha vivências. Falar de trança para mim, como mulher preta e trabalhando com a maioria de um público [composto] por pessoas pretas, não é só a base da beleza. Costumo falar que sair de casa para fazer o cabelo é autocuidado", conta Kenia, que através do trabalho tenta proporcionar para outras mulheres e homens um espaço seguro e a possibilidade de ressignificar a violência que o racismo impõe diariamente.


				
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Dona do estúdio Irun Ona, Kenia saiu da casa dos pais e se sustenta através do trabalho de trancista. Foto: Redes sociais

Assim como o trabalho de trancista, um novo olhar também é transmitido através do que a profissional chama de autocuidado. Distribuindo o que receberam, Rebeca e Kenia acreditam que é o dever da nova geração transmitir mais conhecimento e acolhimento.

"É de fato um poder. A pessoa senta na cadeira de uma forma, quando ela levanta é outra coisa. Parece mágica! É um alívio" [A pessoa sente] que vence porque sentou de um jeito e quatro horas depois sai superpoderosa", fala Rebeca sobre esse poder de transformação.

Focadas em aprofundar as próprias habilidades, as empresárias buscam novos métodos, técnicas e formas de atender as clientes para evitar repetir antigos padrões. Ao longo da carreira, Kenia se espacializou na trança Nagô, uma herança do povo Iorubá, trazido pelo Brasil de países como o Benim, a Nigéria e o Tongo durante a escravidão.


				
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Em viagem para a ANgola, Rebeca aprendeu novas técnicas para trançar diferentes tipos de cabelo. Foto: Arquivo Pessoal

Já Rebeca, em viagem para a Angola, estudou técnicas de trança com outros profissionais, que não abandonaram essa herança durante o processo de escravidão no Brasil. Nesse processo, transmitido do negro para o negro, que muitos estereótipos racistas ligados as tranças (assim como outros aspectos culturais da negritude) vêm sendo quebrados.

"O que eu tento proporcionar para os meus clientes é um processo mais próximo, onde podemos trocar vivências. Muitas pessoas associam trança a dor, a quebrar o cabelo, quando, na verdade, a trança é a reconexão do que a gente tem e não precisa ser dolorido", diz Kenia.

"Nossa geração consegue tirar esse [estigma] de que a trança é algo ruim, algo sujo, algo para pessoas de baixa renda. Nós conseguimos mudar esse pensamento. Por estudar mais, [...] eu consigo dizer para uma cliente minha que ela pode lavar o cabelo, usar xampu. Essa é uma responsabilidade nossa, de trancistas da nova geração, de passar essas informações", complementa Rebeca.

A valorização da atuação como trancista também é um aspecto relevante para a mudança, na opinião das profissionais. Para além de reafirmar um aspecto próprio, a profissão é capaz de movimentar comunidades, criando oportunidades para outras pessoas. Enquanto herança, as tranças têm o poder de enriquecer a vida das pessoas de dentro para fora, apresentando uma perspectiva de futuro mais promissor e com menos sofrimento para as pessoas negras.


				
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Kenia aprendeu o trabalho de trancista observando as mulheres da família. Foto: Arquivo Pessoal

"É uma porta. Às vezes a gente olha para pessoas de outras profissões, que ganham bem, e pensa: 'será que um dia eu vou chegar até lá?'. Porque os nossos teriam que parar em algum momento ou ficar na 'mesmice'?. Não! Vamos crescer, expandir. É o que eu tento falar para outras mulheres negras, não é porque você nasceu na periferia que você precisa ficar lá para sempre", enfatiza Kenia.

Confira o bate e papo completo com Rebeca Xavier e Kenia Morais no episódio do Preta Bahia para celebrar o mês da pessoa trancista:

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