Com uma trajetória de mais de 30 anos e diversos álbuns dedicados a grandes nomes da música popular brasileira, a cantora paulistana Mônica Salmaso tem vivido a felicidade de dividir o palco com um de seus "heróis". É assim que ela define a experiência de estar ao lado de Chico Buarque na turnê "Que Tal Um Samba?", que chega a Salvador no próximo dia 28 de abril.
As apresentações coroam em grande estilo o retorno da artista aos palcos após a fase mais aguda da pandemia de Covid-19, período em que ela se reinventou sem deixar de lado uma de suas principais marcas: o espírito colaborativo na música, por meio do projeto "Ô de Casas".
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Em entrevista ao Mundo GFM, Mônica fala sobre a expectativa para os shows na capital baiana, faz um balanço de suas parcerias e comenta seu mais recente álbum, gravado com o pianista André Mehmari em homenagem a Milton Nascimento.
Mundo GFM: Você tem viajado o Brasil junto a Chico Buarque na turnê "Que Tal Um Samba?", que agora chega a Salvador. Conte um pouco mais sobre como surgiu essa aproximação entre vocês e o convite para participar da turnê.
Mônica Salmaso: Foi um presentão que a gente nem imagina que pode acontecer na vida. Nunca perguntei pro Chico, ele que me convidou. Tenho a impressão de que esse convite apareceu quando a gente fez um vídeo... Durante o período de isolamento da pandemia, eu fiz uma série de vídeos chamada "Ô de Casas" e convidei o Chico para fazer um dos vídeos, e ele topou. E esse foi um momento muito bonito, porque estava todo mundo muito agoniado dentro de casa, com todas as angústias, os medos, e poder ver uma pessoa como o Chico também na casa dele, isolado como todo mundo, oferecendo uma música, como aconteceu no projeto todo, foi muito lindo e muito gostoso de fazer. Acho que foi aí que ele teve essa ideia, não sei como foi. Só sei que quando ele me perguntou se eu toparia, dei um pulo gigante (risos). Claro que isso para mim é um presente, significa uma espécie de certeza, de que eu fiz as escolhas certas, porque ele é um herói pra mim, é um artista e uma pessoa que o tempo inteiro foi um norte para a minha carreira. Então, quando seu herói te convida para fazer uma coisa com ele, significa que você fez as escolhas certas. Foi assim que eu me senti. Tem sido muito bonito.
MGFM: Falando sobre o show de Salvador, como está a expectativa?
A expectativa de fazer na Concha é a melhor possível. Eu nunca cantei na Concha Acústica, já cantei várias vezes no Teatro Castro Alves, mas nunca lá. E todos os músicos da turnê que já tocaram lá dizem que é mágico, uma coisa muito linda, muito agregadora, que vai muita gente e é muito quente... Isso já é de se imaginar, porque o público da Bahia, de Salvador, é incrivelmente caloroso, queridíssimo, sempre. Eu faço ideia de como isso seja no show do Chico e ainda na Concha. Então, a expectativa é a melhor possível.
MGFM: Durante a pandemia você realizou o projeto "Ô de Casas", que trouxe 174 vídeos de colaborações musicais com diversos artistas. Como você mesma disse, esse projeto contribuiu para estreitar sua relação com Chico Buarque e também te aproximou de outros músicos. Qual o balanço que você faz desse projeto? Existem planos para retomar essas parcerias em algum projeto "presencial"?
MS: Olha, o que aconteceu foi uma coisa espontânea, nem era uma ideia de projeto. Foi um improviso que deu origem a essa série de vídeos. Eu estava isolada no interior de São Paulo só com um celular e um iPad, quando me dei conta que além de o meu trabalho estar totalmente suspenso, eu também não poderia fazer nem música com outras pessoas, nem encontros, e isso me deu uma agonia danada. Além disso, eu via pessoas em São Paulo fazendo ações, produzindo máscaras para distribuir, fazendo distribuição de refeições. E eu só podia contribuir de longe. Eu falei "preciso fazer alguma coisa que ajude alguém, alguma coisa de afeto", porque era um momento muito dolorido, foi logo no início, no final de março do primeiro ano de pandemia. Estava tudo muito estranho e aí eu, no improviso, convidei o [músico] Alfredo del Penho, e procurando nas ferramentas que estavam disponíveis de graça no celular, fiz o primeiro vídeo com ele. Foi uma brincadeira que nos deu tanto carinho, tanto por fazer como também por receber o carinho das pessoas que receberam o vídeo, que virou a minha "cachaça", como se diz. Eu não conseguia mais parar, e os meus amigos, os músicos... Eu já tenho uma "estradinha", então me dei conta do número de pessoas que eu conheço com as quais já trabalhei. Poucas pessoas eu conheci fazendo o "Ô de Casas", a absoluta maioria são pessoas com as quais já trabalhei e já conhecia. Então foi o início de tudo, um afeto gigante que se desdobrou inclusive em um projeto de bordados que virou um presente. Recebi 150 bordados feitos a partir dos vídeos do "Ô de Casas" por pessoas do Brasil inteiro. Quase morri de chorar com o presente. Os comentários que a gente recebia de pessoas que criaram uma rotina com aqueles vídeos, trabalhadores da saúde que diziam que chegavam "destruídos" em casa, jantavam e viam o vídeo do dia... Isso criou uma rede de afeto através da música que não vou esquecer nunca. Eu falo e me emociono. Agora, encontrar com as pessoas eu sempre encontrarei, essa história com o Chico foi um desdobramento disso. Mas, como eu falei, já trabalho ou já trabalhei com a maioria daquelas pessoas ali, com as novas eu quero me encontrar e vai ser sempre uma felicidade, mas transformar aquele trabalho numa coisa presencial é muito difícil, é muita gente. Eu seguirei a minha estrada e sempre vai ser muito bom, porque a gente nunca vai esquecer o que aconteceu naquele momento.
MGFM: Quais foram as colaborações inéditas do "Ô de Casas"?
MS: É tanta gente que certamente eu vou esquecer alguém, mas por exemplo, o Ney Matogrosso, que eu adoro, a gente já tinha se cruzado e conversado em algumas situações, mas eu nunca tinha cantado com ele. Aí ele topou fazer. O João Bosco foi a mesma coisa. Mas tem artistas novos que apareceram, o Moyseis Marques, um cara incrível, eu já tinha ouvido falar dele, mas a gente não se conhecia e acabamos fazendo dois vídeos em momentos diferentes. Vou acabar sendo injusta, mas tem um monte de pessoas que acabei encontrando pela primeira vez ou realizando alguma coisa pela primeira vez. E é incrível, porque tinha a dificuldade de você ficar quase junto, o máximo possível, parceladamente, sem poder fazer ao mesmo tempo.
MGFM: É um grande desafio musical, inclusive, não?
MS: É, é uma maneira também de estar vivo na música. Quando eu fazia o convite, eu queria que a pessoa estivesse o mais à vontade possível, até porque eu já estava fazendo vários e estava com a mão no negócio, em como a coisa funcionava. Mas tinha gente que não tinha a menor intimidade com isso, enquanto outros tinham mais do que eu. Mas eu já convidava e sugeria alguma coisa que achava que iria funcionar daquela forma de fazer. Com isso eu aprendi muito mais músicas do repertório dos convidados do que do contrário. Então foi um jeito de me manter, além de tudo, estudando, viva. Nesse momento de fazer os vídeos eu saía daquelas agruras que estávamos passando. Eu era feliz ali, inteiramente, fazendo os vídeos. Isso me fez muito bem.
MGFM: Falando ainda de encontros e reencontros, houve também o reencontro com o pianista André Mehmari. Vocês lançaram juntos em outubro o álbum "Milton", em homenagem a Milton Nascimento. Conte um pouco mais sobre esse trabalho.
MS: O André é um músico incrível, e a gente tem uma parceria que acontece em shows e em discos, meus e dele, desde o início dos anos 2000. Então a gente tem muito tempo de convivência musical. O André mora sozinho e tem um estúdio, e eu estava com o Teco Cardoso [flautista e saxofonista] lá no interior. Chegou um momento em que eu falava "preciso fazer música junto", e o André também. Aí decidimos fazer uma "quarentena dentro da quarentena", um isolamento de 15 dias, para poder ir pro estúdio e fazer alguma coisa juntos. A gente fez um primeiro encontro, que foi veiculado só no YouTube, que chamamos de "Quarentena". Era tanta música, porque estávamos com tanta vontade, que dividimos em dois programas. No meio desses programas, tinha uma gravação de uma música do Milton, "Morro Velho", que ao fazer no estúdio, nossos corações já apertaram. Ficamos mais emocionados ainda quando assistimos o resultado final em vídeo, e resolvemos fazer um novo encontro, agora homenageando o Milton, com participação do Teco Cardoso em duas músicas. Voltamos para o estúdio e gravamos um repertório dedicado ao Milton a partir da emoção que foi para nós a gravação de "Morro Velho". Esse material foi ao ar no YouTube naquele momento e eu achei que seria uma tristeza esse material nunca mais ser visto, porque foi muito bem feito e simboliza para a gente, também, o que foi vivido naquele momento. A densidade das músicas do Milton, que em qualquer momento seriam maravilhosas, ditas ali naquele momento tinham outro peso. E aí eu propus à gravadora Biscoito Fino, eles toparam, a gente lançou nas plataformas digitais no dia do aniversário do Milton [26 de outubro] e tivemos edição em CD também. É a nossa forma de agradecer ao Milton e nossa vontade de manter vivo esse trabalho que foi feito com muito amor em um momento muito importante.
MGFM: Algo que dá para perceber no álbum é que o repertório é muito baseado em músicas da obra de Milton que não são muito conhecidas, como "A Lua Girou", "Milagre dos Peixes" e "Credo". Não costumam ser as primeiras escolhas de quem resolve gravar um trabalho em homenagem a Milton. Esse resgate, essa busca por canções menos óbvias é uma preocupação sua na hora de escolher o repertório de um trabalho?
MS: Muito pelo contrário, o que acontece na verdade é que para mim tem peso igual. Eu não priorizo as músicas mais conhecidas, para mim é tudo peso igual. O André falou para mim assim "escolhe o que você quiser cantar, porque eu amo tudo da discografia do Milton". Então, o Milton faz parte da história da nossa formação musical. Ele só pediu para eu cantar "Paixão e Fé", que não é do Milton, mas que a gravação de Milton é icônica, porque queria me ouvir cantando. Eu fiz um mergulho, fui ouvir toda a discografia dele, que também foi outro momento mágico. Eu revisitei momentos da minha vida em que eu nem era cantora e que eu mal era gente (risos), mas ouvia essas coisas. Então, fui parar nesses lugares, agora como uma pessoa de 51 anos que trabalha com música. E para mim, as músicas tinham peso igual. Como eu ouvi muito a obra de Milton, não tem lado B para mim, tem as minhas preferidas, aquilo que eu ouvia mais. Um filtro possível, que talvez tenha pesado mais na escolha, seja o das letras que diziam o que a gente queria dizer naquele momento, cuja poesia tinha uma urgência, mais do que qualquer coisa. Porque é duro escolher onze músicas num mar de uma obra inteira. É muita coisa. Então, eu não acho que a gente tem que ir procurar, ou deve ou não deve cantar músicas já muito conhecidas. O trabalho é que manda. Meu problema é olhar pro disco e ver como ele quer ser.
MGFM: O que você tem escutado atualmente? Você acompanha algum artista da Bahia?
MS: Eu conheci uma menina linda chamada Ana Barroso. Essa menina é maravilhosa, completamente maravilhosa. Eu fui convidada para fazer uma espécie de curso, uma masterclass por Zoom, e a Ana apareceu para ser minha aluna, vê se pode! Aí fiquei olhando aquela menina linda e fui ouvir o trabalho dela. É um trabalho lindo, é minha mais recente descoberta. Estou apaixonada por ela, estou achando lindo o amor que ela tem pelo Brasil, ela é linda, canta lindamente, compõe... Estou encantada pela Ana. Acho bonito de ver, essa produção nova tem umas mulheres bacanas, elas são potentes, elas têm uma voz ativa, elas são fortes, estou gostando de ver isso.
MGFM: Em uma entrevista de dezembro de 2021, você afirmou que "fazer cultura no Brasil é resistir", devido ao momento político vivido pelo país. Agora, qual a perspectiva?
MS: Acho que ainda é necessário resistir. Acho que a gente aprendeu várias coisas. A gente bateu o pezinho lá no fundo do poço e por um triz a gente conseguiu recomeçar. Não vai ser fácil, mas a gente ter um presidente que fala em cultura e educação, por incrível que pareça, é uma revolução, porque a gente estava em um buraco onde esses valores estavam sendo destruídos. E estavam mesmo, não é nem uma questão de interpretação. É só ver o quanto foi gasto ou deixou de ser gasto com isso, as declarações feitas em relação a isso, a demonização da cultura, o desmonte, o jeito de falar sobre os artistas... Era um horror que a gente estava vivendo. Acho que temos um caminho pela frente, muita coisa foi maltratada, estragada, destruída, inclusive nas nossas florestas. Então, temos coisas para reconstruir. Acho que os três pilares mais importantes para pensar nisso são cultura, educação e meio ambiente. Naquele momento, fazer cultura era um ato de resistência direta, de mostrar que o que fazemos é fundamental e não vamos parar de fazer, e agora segue sendo política no sentido de reafirmar que estamos juntos nessa reconstrução, que estamos aliviados, por um lado, mas que sabemos que muito vai ter que ser refeito e espero que seja melhorado. Espero que tudo isso que a gente atravessou sirva para a gente lidar com questões do Brasil com as quais talvez nunca tenhamos lidado diretamente, e que precisamos resolver. O Brasil precisa encarar seus defeitos e fraquezas para virar um país com mais igualdade, respeito, inclusão, diversidade. Tem muito chão pela frente, mas foi dado um grande passo, porque a gente estava no fundo do poço.