O pianista, maestro e arranjador César Camargo Mariano chega aos 80 anos de idade nesta terça-feira (19). Nome por trás de arranjos emblemáticos da MPB, o músico paulista, que acompanhou Elis Regina (1945-1982) e Wilson Simonal (1939-2000), entre outros, também tem trabalhos de destaque no segmento instrumental e é conhecido pela sofisticação de seus arranjos.
Unindo o jazz ao samba - e mais tarde, ao rock progressivo e ao pop eletrônico -, Mariano deixou sua marca na música popular brasileira desde os anos 60. São dele, por exemplo, os arranjos de clássicos como "Sá Marina" (Antônio Adolfo e Tibério Gaspar), na voz de Simonal; e "Como Nossos Pais" (Belchior), interpretada por Elis. Nesta matéria especial, o Mundo GFM traz alguns detalhes e curiosidades sobre a trajetória do artista.
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O início como autodidata
Nascido em 19 de setembro de 1943, em São Paulo (SP), Antonio Cesar Camargo Mariano foi um "garoto prodígio" na música. Em sua autobiografia "Solo - memórias", publicada em 2011, o artista conta que ganhou do pai um piano, como presente de aniversário, aos 13 anos. Assim que sentou ao instrumento, começou a tocar, sem nunca antes ter tido contato. A surpresa foi tamanha que seu pai, Miro, teve um infarto no mesmo instante - mas se recuperou 48 dias depois.
Eu estava tocando firme, com a sonoridade e a definição bem perto das que eu tenho hoje em dia. Não me lembro de que música era... talvez estivesse compondo... não sei... só sei que não eu não conseguia parar de tocar... Cesar Camargo Mariano
Aos poucos, Mariano começou a tocar em bailes e desenvolver seu repertório musical. Iniciado no jazz, o jovem se considerava um "jazzista radical", mas agregou outras influências ao seu som durante a convivência com os músicos do boêmio Beco da Baiúca, em São Paulo, nos anos 60. Ele, porém, ainda não sabia ler nem escrever música. Só aprendeu por incentivo do maestro e arranjador Eumir Deodato, quando já formava, ao lado dos músicos Sabá (contrabaixo) e Toninho Pinheiro (bateria), o trio Som Três.
Os três mosqueteiros de Simonal
Em 1966, o cantor Wilson Simonal era um fenômeno da música popular e estava estreando o programa "Show em Si...monal" na TV Record. O Som Três foi escolhido como seu grupo de apoio no programa e em seus discos. Até então, Simonal nunca havia considerado ter uma formação fixa lhe acompanhando, como conta o jornalista e escritor Ricardo Alexandre na biografia "Nem Vem Que Não Tem: A Vida e o Veneno de Wilson Simonal".
"O Som Três era um dos grupos instrumentais contratados da Record e que rondava entre um 'Show do dia 7', o programa 'Hebe Camargo' e um ou outro 'Corte-Rayol Show', acompanhando quem fosse necessário. Mas isso até Simonal convidá-los para trabalhar como grupo fixo de seu show", narra.
Cesar Mariano teve papel fundamental na transformação do som de Wilson Simonal e na criação de uma nova identidade, que veio a ficar conhecida como a "Pilantragem". Ainda segundo Alexandre, diante da demanda do cantor, que passou a querer fazer uma música com mais "veneno", o arranjador chegou a propor um naipe de metais, mas ouviu a negativa no ato: Simonal queria a dinâmica das big bands em uma formação de piano, baixo e bateria. O resultado foi uma sonoridade suingada e única, presente em clássicos como "Nem Vem Que Não Tem" e "Sá Marina".
Ouça "Sá Marina":
O Som Três ajudou a formatar definitivamente a persona artística de Simonal. Enquanto o cantor investia na imagem do bon vivant elegante, marrento (...) o trio se configurava como uma espécie de trupe de desenho animado, com três figuras icônicas, carismáticas e totalmente distintas: César era o gênio tímido, Toninho o gordo bonachão e Sabá o tiozinho ranzinza. Ricardo Alexandre
Em sua autobiografia, Mariano contou que desejava que seu trabalho ao lado de Simonal fizesse a MPB avançar. "Eu buscava referências no jazz e até na música erudita, assim como nos ritmos black americanos, no funk, no blues... Minha obsessão era juntar tudo isso com a influência afro do samba. Ele ficava muito à vontade em qualquer um desses gêneros", pontuou.
Além de ser o grupo de apoio de Simonal, o Som Três lançou seis álbuns próprios. Um dos destaques é a versão instrumental de "Irmãos Coragem", tema de abertura da novela homônima da Globo, presente no álbum "Tobogã" (1970).
Ouça "Irmãos Coragem":
Elis: simbiose afetiva e musical
A parceria do Som Três com Simonal durou até 1970. Pouco depois, Mariano foi convidado pelo jornalista e produtor Ronaldo Bôscoli (1927-1994) para ir até o Rio de Janeiro fazer a direção musical do novo espetáculo de Elis Regina, até então, sua esposa. Mas não por muito tempo. O pianista foi comunicado que a Pimentinha - já reconhecida como a maior cantora do Brasil - estava mudando de banda, de equipe e até de marido. Caberia a Mariano segurar esse "rojão".
Em sua autobiografia, o pianista detalhou o processo criativo do show "Elis no Teatro da Praia" e destacou que a artista participava de todas as etapas do processo, desde o roteiro até os arranjos. Assim nasceu uma "intensa cumplicidade", que se transformou em um relacionamento.
Eu falava, ela já concluía meu pensamento, e vice-versa. Até o jeito de trabalhar, o envolvimento, o detalhismo batiam. Era o mesmo pique. E havia uma identidade que começava no disco de cabeceira e ia até o que fomos compreendendo mutuamente de nossas ambições artísticas. Era, mais ou menos, a identidade que existiu entre mim e Simonal, mas num grau bem mais profundo. Cesar Camargo Mariano
A parceria afetiva e musical de Elis e Mariano durou nove anos, rendendo dez álbuns, cinco espetáculos e dois filhos - Pedro e Maria Rita. Quase todos os maiores sucessos da carreira da Pimentinha têm o dedo de Cesar Camargo Mariano, que soube compreender e formatar a identidade artística da cantora. Surgiram nessa fase álbuns como o clássico "Elis & Tom" (1974), ao lado de Tom Jobim; "Falso Brilhante" (1976), com o repertório do show homônimo; e "Essa Mulher" (1979), puxado pelo hino da Anistia "O Bêbado e a Equilibrista" (João Bosco/Aldir Blanc).
Ouça "O Bêbado e a Equilibrista":
Boa parte da identidade sonora desenvolvida por Elis e Mariano neste período se deve, também, ao uso de teclados eletrônicos, pianos elétricos e pedais de distorção. Em entrevista à revista Música, em 1976, o artista fala sobre o aprofundamento do uso dessas ferramentas. "Eu tinha um preconceito, um medo dos teclados eletrônicos. Eu gostava, mas achava que a técnica era muito diferente. E é realmente. (...) Mas a cabeça está sempre correndo na frente da mão. Aí você começa a querer um som que no piano de pau não dá", disse.
Trabalho instrumental diverso
Em meio a teclados e "caixinhas", Mariano voltou a fazer música instrumental em 1977, com o fim do show "Falso Brilhante". Por recomendação médica, Elis teve que suspender o espetáculo que apresentava no Teatro Bandeirantes desde 1975, já que estava grávida de Maria Rita. Ela logo incentivou o marido a fazer um projeto próprio, aproveitando a banda com a qual já trabalhava.
"Durante o Falso Brilhante, a banda ganhou bastante coesão. Todos se revelaram tremendos músicos. Tinha tudo a ver trazê-los para esse espetáculo instrumental, assim como todo o aparato tecnológico e aquele tipo de instrumentação que foi usado lá, ainda inédito na música instrumental ao vivo", contou Mariano em sua autobiografia. Assim nasceu "São Paulo-Brasil", o show, que logo deu origem a um disco. Com sonoridade baseada no jazz fusion, o álbum até hoje é cultuado no Brasil e no exterior.
Ouça "Metrópole", do álbum "São Paulo-Brasil":
Outros trabalhos instrumentais se seguiram, variando entre o jazz, o pop e a MPB. É o caso de "Cesar Camargo Mariano & Cia." (1980), com a mesma banda formada para o álbum "Elis" (1980); "Samambaia" (1981), ao lado do guitarrista e violonista Hélio Delmiro; e "Todas as Teclas" (1984), produto de uma série de apresentações ao vivo feitas em parceria com o pianista e arranjador mineiro Wagner Tiso.
Inovações eletrônicas
Outro momento da trajetória de Mariano que merece destaque é a sua incursão pela música eletrônica. Se em "Todas as Teclas" o uso de sintetizadores e baterias eletrônicas já marcava presença, as experimentações se aprofundaram nos álbuns "Prisma" (1985), ao lado do pianista Nelson Ayres, e "Ponte das Estrelas" (1986), com o grupo Prisma. Os dois projetos foram combatidos por críticos mais tradicionalistas, como explica o próprio Mariano em sua autobiografia.
Algumas críticas tinham razão de ser. Os recursos digitais, na música, se por um lado turbinam a criatividade, por outro podem levar a uma produção em série 'plastificada'. O limite é tênue, um fio de navalha, até porque essas máquinas exercem um fascínio enorme sobre qualquer um de nós. Minha proposta é e sempre foi compor, fazer arranjos e tudo o mais no piano e no papel e só depois colocar as máquinas para trabalhar. Cesar Camargo Mariano
Veja trecho de apresentação do show "Ponte das Estrelas":
Fazem parte desses discos novas interpretações instrumentais para clássicos como "Saudades dos Aviões da Panair (Conversando no Bar)" (Milton Nascimento/Fernando Brant), "Nos Bailes da Vida" (Milton Nascimento/Fernando Brant) e "Sabiá" (Tom Jobim/Chico Buarque).
Mariano hoje vive nos Estados Unidos, para onde se mudou ainda nos anos 90, ao lado da esposa, Flávia. Eventualmente, o pianista realiza novos projetos. Ao lado do filho Pedro Mariano, fez o álbum "Piano e Voz", em 2003. Seu último trabalho é o disco "Christmas Memories", de 2022.
Cinco álbuns da MPB para descobrir os arranjos de Cesar Camargo Mariano:
"Alegria, Alegria!" (1967) - Wilson Simonal
"Elis" (1972) - Elis Regina
"Caça à Raposa" (1975) - João Bosco
"Abraços e Beijinhos e Carinhos Sem Ter Fim..." (1984) - Nara Leão
"Coisas do Brasil" (1993) - Leila Pinheiro