Salvador é a capital mais negra fora do continente africano, de acordo com o IBGE. Mais de 825 mil pessoas se declaram negras, 11% a mais que em 2010. O dia da consciência negra, no entanto, não é feriado municipal.
Em 1995, o Congresso Nacional definiu que os feriados locais, municipais, deveriam ficar limitados ao máximo de quatro por ano, isso na Lei Federal 9093-95. O advogado Arthur Barachisio explica que em "nossa cidade já havia quatro feriados locais, portanto, não era possível adicionar nenhuma nova data de feriado, o que impedia, portanto, o acréscimo do dia da consciência negra", comentou.
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Na Bahia, apenas Alagoinhas, Lauro de Freitas, Cruz das Almas, Camaçari e Serrinha têm o feriado. Porém, a data já foi nacionalmente instituída.
Arthur segue explicando que "somente com o advento da nova Lei Federal 14.759 De 2023, publicada em 22 de dezembro do ano passado, foi então declarado como feriado nacional o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Logo, agora em 2024, finalmente, poderemos celebrar essa importante data na nossa Salvador, tão marcada pela resistência e ancestralidade, reforçando a luta contra o racismo e a reflexão sobre a história e a memória do nosso povo", completou.
Quem foi Zumbi dos Palmares
A liderança de Zumbi dos Palmares, atravessa gerações e representa a resistência de um povo. De acordo com o historiador Murilo Mello, "ele se destaca sendo líder da comunidade do Quilombo dos Palmares. Neto de uma rainha, de uma nação africana e sobrinho de um antigo líder, Ganga Zumba, torna-se referência por ele liderar essa comunidade quilombola mais representativa da história do Brasil, localizado na serra da barriga", contou.
O dia de sua morte, 20 de novembro, é lembrado em todo o território nacional como o dia da Consciência Negra.
Murilo termina dizendo que Zumbi "tem forte representatividade na abolição da escravatura por isso ele é essa simbologia forte dentro da história do Brasil como um dos líderes principais do movimento negro contra a estrutura escravista da américa portuguesa".
Baianos e baianas que fazem a diferença para a comunidade negra
O racismo pode afetar a autoestima e a confiança de pessoas negras desde a infância e, se não observado e combatido, os impactos podem ser sentidos até a fase adulta. A psicopedagoga Fabiana Cardeal, explica que desde criança, a autoestima e o empoderamento devem ser trabalhados no indivíduo.
"Eu acredito que o protagonismo negro deve ser debatido desde a infância. Primeiro, porque a criança precisa de referenciais, eu mesma não tive referenciais negros de grande importância, no sentido do meu contexto social", contou Fabiana.
Em seu livro "Era uma vez uma menina preta" Fabiana traz justamente a importância da criança em seu próprio centro e protagonismo.
"Apesar da história que nos contam, apesar das dores que já vivenciamos, é importante, desde a infância, você ter contato com negros que desenham, que buscam e que escrevem uma história diferente".
Ela conta que hoje vê "negros nas novelas, nas passarelas, no consultório médico, no consultório psicológico". Ela enfatiza que o caminho é a educação. "Através da educação, eu percebo que o negro pode chegar onde quiser e inspirar outras pessoas", completou.
Consciência Negra começa através do afroempoderamento desde a infância
É nessa perspectiva que a assistente social Doraney Alves criou uma biblioteca, no bairro de São Caetano, através do Instituto Comunitário Princesa Anastácia, para que todas as crianças tivessem acesso à literatura afrobrasileira.
"Nós montamos essa biblioteca que tem na sua base a literatura afro-brasileira, ou seja, a maioria dos exemplares dos livros. Estamos sim impactando positivamente a comunidade. Quando você atua com essa com esse público, é preciso trabalhar o fortalecimento da identidade dessas dessas crianças e adolescentes, através de uma imagem positiva do ser negro, do ser negra", disse Doraney.
Luislinda Valois sentenciou um professor racista quando criança; mais tarde, tornou-se juíza
A primeira juíza negra do Brasil, é de São Caetano, em Salvador. Filha de um motorneiro e uma costureira, Luislinda Valois, tem uma trajetória inspiradora que atravessa gerações.
A magistrada de 82 anos, conta que prolatou a primeira sentença contra o racismo no Brasil, em 1993. "Pensa na coragem! Eu nunca admiti discriminação contra o povo negro. Isso foi um marco no país", disse ela.
Antes disso, aos nove anos de idade, condenou um professor que cometeu racismo contra ela ainda na escola, e desacreditou de sua capacidade. O ano era 1951, e o colégio era Duque de Caxias, na Liberdade.
Luislinda se emociona ao contar essa história.
"Num determinado dia o professor pediu um material de desenho e eu falei com meus pais, então, eles compraram o que deu pra comprar. Na hora de eu apresentar este material ao professor, ele virou-se para mim em plena sala de aula e disse: menina, não foi este o material que eu pedi. Você trouxe um material errado. Aí eu disse não, este foi o material que os meus pais puderam comprar, ele virou-se para mim e disse: 'olha sabe de uma coisa, se os seus pais são tão pobres não podem comprar o material de desenho que eu pedi, pare de estudar e vai aprender a fazer feijoada na casa da branca que você vai ser muito mais feliz", contou emocionada. Mas, ela retrucou o professor dizendo "eu não vou aprender a fazer feijoada na casa da Branca, não, eu vou me tornar juíza e volto aqui pra lhe prender".
A aluna exemplar tornou-se professora, advogada, juíza, desembargadora, ministra dos Direitos Humanos e embaixadora da paz pela ONU.
De acordo com o conselho nacional de justiça, em 2023, no brasil havia 13.272 juízes, desse total, apenas 1930, eram negros. Na Bahia, dados do mesmo ano apontam que de 661 magistrados, 276 são negros.
Numa sociedade colonizada por homens brancos, a doutora em antropologia Cristiane Sobrinho explica a importância de alguém como Luislinda.
"Ao redor desses homens se reúne toda uma estrutura de poder, e o contraponto a estes homens, é a mulher negra. Ela experimenta o mais duro o peso do racismo e do sexismo, além das consequências desse processo que é exclusão econômica. Nesse espaço a figura da doutora Luislinda se insere como uma quebra de paradigmas, como uma importante referência para uma luta por uma sociedade mais Justa e mais igualitária",
Conheça a mulher que foi a primeira Deusa do Ébano do Ilê Aiyê
Em 1976, o Ilê Aiyê, 1º bloco Afro do Brasil, fundado no Curuzu, em Salvador, coroou a primeira deusa do ébano.
Maria de Lourdes Cruz conversou com a Bahia FM e contou que à época "eram nove candidatas. Para fechar as dez eu fui convidada. Coloquei uma roupa no meu corpo e fui para participar. Quando chego lá, teve o concurso, dançamos e tudo mais. Quando foi na hora de falar a respeito de quem ganhou. Falaram o meu nome. Como a primeira Deusa do Ébano do Ilê Aiyê", contou.
Maria de Lourdes Cruz, a Mirinha, foi escolhida como a rainha do Ilê. O evento marcava um ponto de virada no empoderamento negro feminino.
Ela explica que "antigamente não era Deusa do Ébano, era Rainha do Ilê Aiyê. Então a minha experiência hoje, que nós negros, não existia negro sendo rainha. E hoje temos o Ilê Aiyê. Que fez as coisas clarear... Para nós... Então hoje eu me sinto muito orgulhosa de ter sido a primeira", completou.
O concurso que já está em sua 44ª edição, vai muito além da estética, como afirma antropóloga Jamile Borges.
"A ideia de beleza negra, não é apenas um elemento estético, mas é uma ação política que reflete a luta por visibilidade, mas também a luta por afirmação identitária e combate às desigualdades raciais e infra estruturais desse país", disse Jamile.
O fundador do 1º bloco Afro, Vovô do Ilê, comenta o legado da noite da beleza negra.
"Realmente, mudou a postura, o comportamento da mulher negra, a valorização da mulher negra, que só ficava sempre segundo, terceiro plano, então hoje nós estamos na 44ª edição da Noite da Beleza Negra e esse evento hoje já está fora do Brasil. Já acontece também pelo recôncavo baiano, e outros estados como o Rio de Janeiro", disse Vovô.
O mês de novembro chega para nos lembrar, que os descendentes de reis e rainhas, negros e negras desta terra, são sinônimo de luta, mas também de vitória.
A doutora em antropologia Jamile, segue dizendo que "um evento como a escolha da Deusa do Ébano é um evento que merece ser celebrado como retrato de um povo que nunca se dobrou aos mecanismos da economia escravista e, encontrou em meio ao dor e aos traumas da ferida colonial, espaços de luta, poesia, beleza e resistência".