O chão tremeu no compasso dos tambores, guiando até a batida do coração de quem assistiu ao grupo carioca Samba de Caboclo, na noite deste sábado (3), no Museu de Arte Moderna da Bahia, que foi palco de uma celebração à cultura e religião de matriz africana em formato de roda de samba.
"Marujo ê, Marujo a... Quem não acredita em Marujo, se embola e se afoga na beira do mar" foi assim, pedindo licença aos ancestrais, que o multiartista baiano Lui entrou no palco e iniciou a festa com vista para o mar.
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Sempre trazendo o afeto e o amor nas melodias, o cantor de Alagoinhas, interior da Bahia, também utiliza a música como instrumento de luta e resistência contra a homofobia, intolerância religiosa e contra o preconceito com aqueles que são soropositivo. Para isto, ele se encontrou no samba.
"Já cantei diversos gêneros musicais, mas sempre volto ao samba, então falei vou assumir isso e comecei a fazer música pegando axé, forró, MPB e trazendo para o samba, mas é o samba de raiz, de terreiro, samba de roda do recôncavo" contou o cantor.
Envolvendo o público com mais de 2.500 pessoas, Lui cantou e girou a saia no palco entre 16h e 18h, abrindo espaço para o Samba de Caboclo fazer uma entrada triunfal com a presença do Marujo, homenageado da noite.
A noite marcou o quarto encontro dos artistas do Rio de Janeiro com a Bahia, que segundo Lui, "representa a grande difusão da cultura preta no nosso país e sem dúvida o tambor é a nossa linguagem, o nosso eixo".
Além do samba no pé a festa contou com uma bebida famosa entre os candomblecistas: a meladinha, que é uma mistura de cachaça com mel, que costuma ser usada nas sessões de terreiro como oferenda aos orixás.
Sincretizado na fé
"Sim, vou no terreiro pra bater o meu tambor, bato cabeça e firmo ponto, sim, senhor!" Neste hino do samba brasileiro, Zeca Pagodinho usa o poder da música para reafirmar a própria fé. É a partir desta busca pela liberdade de expressão artística e religiosa que surge o Samba de Caboclo, um grupo de samba de roda carioca formado por candomblecistas que queriam dar continuidade às canções que faziam nos terreiros.
"Infelizmente no Rio de Janeiro existe um preconceito muito grande para quem é da cultura afro, a gente não tem espaço, a gente não pode cantar na praça como os crentes fazem. Se a gente fizer uma brincadeira nossa na praça todo mundo para pra dizer que é macumba, sem conhecer o fundamento de cada coisa", disse um dos integrantes, Serginho Procópio, em entrevista exclusiva ao Mundo Bahia FM.
O público presente compartilha com os artistas a preocupação em combater a intolerância religiosa, que está diretamente ligada a cultura afro-brasileira.
"A gente precisa valorizar as nossas raízes e entender que a cultura faz parte dessa religiosidade que abrange não só a religião do Candomblé, mas todas as pessoas que gostam de música e de arte", relatou Laise Viana que estava com a namorada Marcia Rabelo.
Juntos há cinco anos, a banda já passou por São Paulo, Belo Horizonte, Recife e agora Salvador, a cidade com mais negros do Brasil. "Aqui é onde a gente se sente em casa, onde a gente sente essa ancestralidade aflorar mais, sem dúvida alguma", complementou Serginho.
Carregado de axé
O termo "axé" é usado como cumprimento nas religiões de matriz africana e, também, como um desejo de felicidade ao outro. Este foi o sentimento compartilhado nesta noite, com um público carregado de axé.
Todos ali presentes se conectaram e, não foi apenas pela felicidade, "aqui todo mundo tem um pé [afro-descendente]. Eu mesma tenho um pé e o corpo inteiro. É minha ancestralidade. Nem que eu não dissesse, não podia negar", disse Cristiane Barroso ao lado da amiga Cintia, apontando para os traços negros.
Em uma homenagem como esta, cada detalhe foi essencial, iniciando pela decoração com estátuas e oferendas aos orixás que encantou a filha de Iansã, Neide, logo na entrada ao encontrar sua deusa. "Isso aqui pra mim é muita cultura é a origem da minha religião, eu sou candomblecista, sou feliz e acho que Exu é quem abre este caminho pra gente".
"Só de chegar a gente já sente a energia positiva, a energia dos caboclos, dos orixás. Isso é muito representativo, a gente consegue ressignificar nossa ancestralidade aqui" ressaltou Camila Carvalho, que foi ao show pela primeira vez com a amiga Gabriele Leite.
Samba de Caboclo voltará a Salvador
Durante o show, os artistas revelaram que a próxima edição do Samba de Caboclo já tem data marcada no dia 12 de outubro e será no mesmo local, no MAM, próximo à água do mar.
O casal de umbandistas, Isis e Diego, que foram no Samba de Caboclo pela segunda vez, ficaram felizes com a ideia, "o mar também é natureza e deixa a gente mais próximo da nossa ancestralidade, temos sempre que cultuar o que vem de graça da terra".