A jornalista gastou dois anos em leituras e entrevistas para concluir a obra |
iBahia - Com relação ao preconceito enfrentado pelos homossexuais, e partindo da sua visão de cristã e também de cidadã, quem condena os gays: Deus ou o próprio ser humano? Marília de Camargo César - A prática homossexual é explicitamente condenada na Bíblia, em várias passagens, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Isso pode ser visto tanto em alguns dos livros chamados pelos judeus de Torá – os cinco primeiros livros do Antigo Testamento _ quanto em algumas das cartas do apóstolo Paulo, no novo. Alguns teólogos modernos, no entanto, como Jack Rogers, professor emérito do San Francisco Theological Seminary, Mel White e do historiador da Universidade Yale John Boswell (os dois primeiros homossexuais assumidos e o terceiro morto em decorrência da Aids), validaram uma releitura das Escrituras Sagradas na qual as proibições ao ato homossexual são colocadas num contexto histórico. Rogers, por exemplo, afirma ter formado uma nova convicção ao refletir sobre como a Igreja foi mudando de visão a respeito de outras questões morais ao longo dos tempos, revertendo, por exemplo, a proibição de ordenar negros, mulheres e divorciados que se casaram novamente. Essa releitura é combatida ponto por ponto pelos teólogos tradicionais, e é um dos tópicos do livro, que poder servir bem a quem se interessa por teologia. Mesmo considerando todos esses aspectos, não creio que um cristão tenha o direito de julgar e muito menos de condenar – no sentido de excluir ou expurgar – outro ser humano em nenhuma hipótese. Um cristão, na concepção do termo, é um “pequeno Cristo”, um imitador do amor incondicional revelado por ele. E foi Jesus Cristo mesmo quem disse - não julgueis; com a mesma medida que você julgar, você será julgado. Desde a Antiguidade até os dias atuais, quem pesa mais sobre o outro: o cristianismo ou a sociedade? Ou seja, o cristianismo e as igrejas são o que são por causa do indivíduo que a constrói, ou as nossas ideologias, crenças e preconceitos são reflexo do Cristianismo? A influência da cultura judaico-cristã sobre a sociedade é inexorável. Quando a mãe hoje manda o filho pequeno lavar as mãos antes da refeição, está, sem saber, remetendo a um hábito introduzido pelos israelitas mais de mil anos antes de Cristo, enquanto peregrinavam ao lado de Moisés no deserto do Neguev. Os dez mandamentos fundamentam diversas leis penais da sociedade ocidental e da oriental. Jesus e seus discípulos, entretanto, segundo a narrativa bíblica, falam de dois sistemas que influenciam os indivíduos e as sociedades: o Reino de Deus, regido por valores sagrados como o amor, a justiça social e a fraternidade, e o “mundo”, entendido como um sistema de valores que se encontra em oposição ao primeiro. Jesus alerta seus seguidores a não amarem o “mundo”, no sentido de não se deixarem seduzir nem escravizar por valores que possam roubar da pessoa a vida plena que o Reino de Deus lhe propõe. Em seu livro, é traçado um painel histórico da homossexualidade, destacando o fato de a prática ser relativamente comum na Grécia e na Roma antigas. Essa concepção, no entanto, mudou radicalmente quando a 'Palavra de Deus' começou a ser propagada. A humanidade viveu um retrocesso no que se refere à questão da homossexualidade? O livro tem bom conteúdo histórico, para mostrar que a prática homossexual sempre existiu. Na Antiguidade, ela não estava tão associada ao campo afetivo, mas principalmente aos cultos pagãos, no caso das sociedades mesopotâmicas, e à iniciação sexual dos rapazes, no caso da Grécia e posteriormente de Roma. A Idade Média é o período de maior perseguição aos homossexuais e mesmo depois de seu fim, ainda no século XIX, cidadãos acusados de sodomia eram enforcados na Inglaterra. As coisas começam a mudar radicalmente a partir da década de 60 do século XX, com o movimento de liberação de costumes iniciado nos Estados Unidos. A liberalização dos costumes e a militância organizada LGBT ajudaram a formar um cenário global mais confortável para os homossexuais em relação a poucas décadas atrás. Contudo, apesar da busca crescente por sua inserção na legislação dos direitos humanos no mundo todo, 76 países ainda consideram as relações entre pessoas do mesmo sexo um ato criminoso, e cinco deles o punem com pena de morte, segundo levantamento da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Transgêneros e Intersex (Ilga). Você disse que foi obrigada a enfrentar os próprios preconceitos para escrever o livro. Esse processo todo transformou de alguma forma sua maneira de encarar o assunto? Sim, foi transformador. Não que eu tenha resolvido todas as minhas dúvidas, ainda há questões que para mim são meio cinzentas. Mas mergulhar nesse universo sobre o qual eu quase nada conhecia me fez encontrar pessoas iguais a mim, com muitos conflitos interiores e que para levar uma vida equilibrada dependem de bons amigos e de pessoas que os amem incondicionalmente. Você é casada e tem duas filhas, certo? Como o tema da homossexualidade é tratado em sua família? Existe um diálogo sobre isso? Durante os dois anos de pesquisa foram muitas conversas. À medida que eu ia conhecendo pessoas e compartilhando as histórias na família, surgiam pautas para muitos debates acalorados. Foi um período de troca e muitas brigas também. O ponto de vista de meu marido difere um pouco do meu, pendendo para o lado mais conservador. Tivemos algumas discussões mais intensas, mas nunca faltou respeito às ideias do outro. Acho que é assim que deveria ser sempre e principalmente dentro das igrejas. Consegue imaginar a forma como reagiria se uma de suas filhas assumisse ser homossexual? Tentei fazer esse exercício mental algumas vezes, mas é difícil falar no campo das hipóteses. Não consegui chegar a nenhuma conclusão. O livro traz um capítulo com a reação de pais e mães ao saber da condição homoafetiva de seus filhos. É um capítulo muito tocante e inspirador. O livro traz casos de homens e mulheres gays que, mesmo admitindo sentir atração pelo sexo oposto, adotaram um estilo de vida heterossexual. Se o sentimento e o instinto sexual são naturais e independem de nossa vontade, eles não deveriam ser vividos plenamente ao invés de serem reprimidos? Qual a sua opinião sobre isso? Há um grande número de pessoas que sofrem por sua orientação sexual homoafetiva – que são chamados pela psiquiatria de egodistônicos. Esse sofrimento nem sempre está relacionado a questões de fé. Os psicólogos relatam inúmeros casos de pacientes que os procuram para aliviar a dor resultante da inadequação. Há aqueles que ao encontrar uma nova dimensão espiritual perceberam não ser possível conciliar sua fé com a prática homossexual e a deixaram, casando-se, tendo filhos, e adotando um comportamento heterossexual, sem, contudo, perder a orientação homoafetiva. Há quem critique essas pessoas, argumentando que negar a própria sexualidade é violentar-se. Talvez se esqueçam que a espiritualidade também é um elemento estruturante do ser. Por outro lado, há aqueles que acreditam que assim nasceram e que Deus os recebe como são. Há que se respeitar as decisões de cada um. Há uma sessão em 'Entre a Cruz e o Arco-Íris' intitulada 'Venha Como Está', que faz referência a uma fala de Jesus Cristo. Estas três palavras não poderiam resumir e descomplicar toda a questão? Não deveríamos aceitar uns aos outros independente do direcionamento de nossa atração sexual, crenças e visões de mundo? Afirmar categoricamente que todos os homossexuais escolheram ser assim, como prega a maioria cristã, é subestimar a quantidade de ódio e desprezo que podem estar reservados para aqueles que trafegam nesta via da sexualidade. Lembro-me da passagem que conta a história de um cego de nascença curado por Jesus, narrada no capítulo 9 do evangelho de João. A cultura da época dizia que as deficiências físicas eram um castigo divino pelo pecado praticado pela pessoa ou por seus antepassados. Uma espécie de “carma”. Os discípulos, então, querem saber o que Jesus pensa sobre isso. “Rabi, quem pecou: este homem ou seus pais, para que ele nascesse cego?” (Jo 9,1). Jesus lhes responde: “Vocês estão fazendo a pergunta errada, procurando a quem culpar. Não há nenhuma relação de causa e efeito aqui. Em vez disso, olhem para o que Deus pode fazer” (Jo 9,1). Enquanto a igreja perde tempo procurando os “culpados”, as obras de Deus permanecem ocultas. Mas a falta de sabedoria não é exclusiva dos evangélicos. Ao politizar um assunto que envolve uma dimensão pastoral e que leva em conta muitos dramas pessoais, os ativistas gays, muitas vezes, também exibem uma postura tão agressiva quanto a de seus opositores. 'Entre a Cruz e o Arco-Íris' é um livro sobre homossexualidade e religião, escrito por uma evangélica, e, ao contrário do que muitos poderiam supor, é um trabalho lúcido e imparcial. Espera que sua obra possa, de alguma forma, contribuir para o enfraquecimento do preconceito e do fundamentalismo religioso contra os homossexuais? Note que quando afirma “ao contrário do que muitos poderiam supor”, revela preconceito. É como dizer: por ser evangélica, não pode ser lúcida nem imparcial. O preconceito não é prerrogativa da comunidade dos crentes em Jesus Cristo contra a minoria homossexual, mas também de boa parte da sociedade em relação aos crentes, que acredita tratar-se de um bando de ignorantes fanáticos. Este é um dado que também deve ser combatido. Espero que o livro sirva para produzir dúvidas nas pessoas. Para os que têm certezas mal fundamentadas, baseadas em chavões evangélicos como por exemplo “ame o pecador, mas odeie o pecado”, espero que o livro sirva para mostrar o outro lado, o lado da dor e do sofrimento, que muitas vezes é omitido. E que possa contribuir com uma conversa mais civilizada e com menos pré-julgamentos de lado a lado.
Entre a Cruz e o Arco-Íris Autora: Marília de Camargo César Editora: Gutenberg Páginas: 240 Preço: R$ 27,90 |
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