Em silêncio ou fazendo preces em sussurros, flores brancas são tocadas na testa antes de serem jogadas nas ondas do mar. O gesto é repetido todos os anos, no dia 2 de fevereiro, dia da Festa de Iemanjá, considerada a maior manifestação religiosa pública do candomblé e também uma das festas populares mais intensas e tradicionais da Bahia.
Tradicionalmente a festa acontece no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, onde está localizada a Colônia de Pescadores, organizadores do evento, que hoje conta também com a parceria de órgãos públicos e sociedade civil. Desde as primeiras horas da manhã, a praia é tomada por fiéis e turistas no objetivo de colocarem seus presentes no balaio que, no final da tarde, será depositado no mar, em local determinado pelo próprio Orixá.
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Apesar da reverência que os pescadores fazem à Nossa Senhora Santana, a festa de Iemanjá não possui qualquer conexão, nem com sincretismo, nem com a religião católica, demonstrando a influência das tradições africanas, reinventadas no Brasil.
Segundo o livro Orixás: Santos e Festas, do Babalorixá Vilson Caetano, na cidade de Salvador, o presente de Iemanjá, organizado por três pescadores no começo do século passado, que reuniram numa caixa de papelão sabonetes, talcos, espelhos e os enfeitaram com flores, deu origem a uma manifestação popular de motivos e significados diversos que nem a própria África conheceu.
Na África, a mãe de todos os Orixás é reverenciada nas águas dos rios. No Brasil, a primeira transformação que o culto sofre é a migração das oferendas para o mar. O hábito de presentear Iemanjá com pentes, espelhos, sabonetes e outros itens também vem sofrendo ajustes ao longo dos anos. Atualmente as pessoas optam por jogar apenas flores, evitando assim qualquer risco aos animais marinhos.
Mãe negra de todos os orixás
Protetora dos pescadores, jangadeiros e homens que ganham sustento no mar, Iemanjá também é conhecida como Janaína, Rainha do Mar e Odò Ìyá (Mãe do Rio). Seus diferentes nomes possuem
significados similares a ‘mulher cujos seios partidos deram origem aos dois maiores oceanos e cujo ventre esfacelado a fez mãe de todos os orixás'.
Descrita como uma bela sereia de cabelos longos e vestido azul, geralmente sua imagem é retratada como uma mulher de pele clara e cabelos longos, usando um vestido azul. Segundo o artista plástico Rodrigo Siqueira, essa representação está associada à Umbanda, religião brasileira que mistura elementos das religiões de matrizes africanas, do espiritismo e do catolicismo.
“A Umbanda surge em 1908, com uma forte base kardecista, onde pessoas de pele branca passam a retratar as divindades, inclusive os orixás. Então, além das imagens possuírem a coloração da pele mais clara, os traços do rosto não remetem aos povos de africanos”, destaca.
Autodidata, Siqueira começou a pesquisar sobre arte sacra afro-brasileira há cerca de 25 anos, mas foi desde o ano de 2009 que passou a se dedicar exclusivamente a esta arte, atuando no resgate dos traços originais dos povos do continente africano.
O artista já deixou importantes contribuições em mais de 35 terreiros de candomblé de todo o país, cinco destes tombados como Patrimônio Cultural, com destaque para o Ilê Obá L’Oke e Terreiro Santa Bárbara, em Lauro de Freitas - BA, Ilê Alabase, em Maragogipe - BA, ilê Raiz de AYRA, em São Félix - BA, e Terreiro de Lembá, em Camaçari - BA. Estão na lista também terreiros nas cidades do Recôncavo baiano e em Salvador, maior cidade negra fora da África.
“Cada terreiro que reconstruímos temos a oportunidade de reparar uma parte de todo mal que a humanidade fez para os povos do continente africano. Além da escravidão, temos toda história, arte e cultura esfacelados. Então, através da materialização da arte negra africana, desconstruimos essa caricatura, para alcançar representatividade e beleza em imagens onde os traços identitários são resgatados”, frisa.
Para 2023, Siqueira aceitou a missão, dada pela produtora cultural Cintia Maria e a cineasta Jamile Coelho, respectivamente diretora institucional e diretora artística do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB), de construir a primeira escultura de negra de Iemanjá, que será doada no dia 2 de fevereiro à Casa de Iemanjá no Rio Vermelho, em Salvador.
“Sem dúvidas um importante marco para a festa de Iemanjá do Rio Vermelho, de muita representatividade ter uma Iemanjá negra. Me sinto muito honrado de poder contribuir tão intensamente para essa história”, concluiu.
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