O verdadeiro caráter de um homem não é reconhecido por aquilo que ele faz em público, mas pela maneira como se comporta no dia a dia, com os amigos e a família. E poucos conheceram Carybé (1911- 1997) tão bem como o artista plástico baiano Mario Cravo, 91 anos.Para relembrar os mais de 40 anos de convívio com o amigo, Cravo recebeu o CORREIO em seu escritório, no Parque de Pituaçu. Mesmo com essa idade, o artista permanece altamente produzindo. Tanto que, para receber a reportagem, precisou interromper o trabalho em mais uma escultura, que está prestes a concluir. O vigor também pode ser percebido logo no cumprimento, depois que o repórter lhe aperta a mão com menos firmeza do que ele esperava: “Aperta direito, rapaz!”.
Mesmo antes de ouvir qualquer pergunta, Mario já dispara a falar sobre “Cariba”, como tratava o amigo-irmão: “Ele foi o colega com quem mais convivi, principalmente a partir da década de 50. Carybé foi o mais gentil dos homens, que nunca se referiu a ninguém de maneira hostil. Era o arquétipo da pessoa boa”.
MirabeauOs dois se conheceram por intermédio do amigo Mirabeau Sampaio (1911- 1993), artista plástico baiano que conhecia Carybé e, entusiasmado com a produção artística do amigo, resolveu apresentá-lo a Mario Cravo. A afinidade pessoal e profissional foi imediata e os dois permaneceram amigos até a morte de Carybé, em 1997.Passaram algumas noitadas nos bares do Rio Vermelho, mas não chegavam a ser boêmios, como diz Mario Cravo: “As pessoas pensam que artistas são boêmios inveterados, mas não é bem assim. É verdade que, às vezes, íamos aos bares, ‘tomávamos uns paus’ e dormíamos tarde. E gostávamos sim de uma cervejinha. Ou algo mais forte...”.Gostavam também de ir às rodas de capoeira em Salvador, especialmente as comandadas pelos mestres Waldemar, Traíra e Bugalho. Carybé e Mario se arriscavam até tocando berimbau. “Convivemos com os hábitos de uma cidade que as novas gerações, infelizmente, não conheceram”, diz Mario. A capoeira, uma das manifestações populares que mais interessavam Carybé, rendeu muitos desenhos. O nono volume da coleção As Sete Portas da Bahia, que vai circular dia 18, é dedicado unicamente à capoeira. O fascículo de hoje, que o leitor recebe gratuitamente, mostra mais um cenário de Salvador: o Mercado Modelo.Além das farras e das rodas de capoeira que unia Carybé e Mario Cravo, havia também as viagens pela Bahia, começando pelo Recôncavo. Iam àquela região em busca de material que os auxiliasse nas criações artísticas. Depois, buscaram novos destinos e se encaminharam para outros estados do Nordeste, principalmente a região sertaneja.ColecionadoresAlgumas das paradas favoritas eram as feiras, onde compravam cerâmicas de artistas populares. Nas igrejas, buscavam ex-votos e santos abandonados pelas instituições, que, segundo Mario Cravo, estavam deteriorados.Muitos eram recuperados quando a dupla chegava a Salvador, já que Mario e Carybé eram colecionadores de arte popular e imagens religiosas. As más línguas, no entanto, trataram logo de criar uma lenda: “Chegaram a dizer que nós vivíamos com o dinheiro que ganhávamos com a revenda das imagens que a gente trazia das viagens. Olha que absurdo!”, revolta-se Mario.O escultor lembra das condições das estradas na época: “Pra você ter uma ideia, levávamos duas horas e meia a três pra chegar a Feira de Santana. Pro Rio de Janeiro, então, eram três dias. Se caísse uma chuva, a estrada, de barro, se transformava num verdadeiro córrego”. Enfrentavam a estrada para chegar a locais que escondiam outro interesse: as pinturas e inscrições rupestres.Numa das viagens, os dois se deram conta de como a arte precisa conservar sua alma, sem se render às leis do mercado. Foi quando fizeram uma encomenda ao Mestre Vitalino, artesão ceramista de Caruaru, como lembra Mario: “Eu queria comprar um touro, mas ele só fazia imagens pequenas. Pedi, então, que fizesse um maior. Pra minha surpresa, quando fui buscar, o touro mais parecia um poodle com a cara quadrada. Ficou muito estranho! Foi aí que me dei conta: o artista tem que manter a sua autenticidade”.TubarãoE a amizade entre as famílias Cravo e Bernabó se estendeu pelas gerações seguintes. Ramiro, artista plástico e filho de Carybé, frequentava habitualmente o ateliê de Mario Cravo. Não foi à toa que também tornou-se escultor. E, junto com Ivan, um dos filhos de Mario Cravo, costumava promover sessões de mergulho e pescaria nas praias do Rio Vermelho.Chegaram a pescar um tubarão que, se não fosse a foto comprovando, muita gente duvidaria. O feito, justamente tratado como um ato de heroísmo na época, rendeu uma histórica foto, em que aparecem as duas famílias juntas, com direito até à presença de Jorge Amado e Zélia Gattai, que moravam no Rio Vemelho, perto da casa dos Cravo.Tantas histórias entre as famílias renderam um poema que Mario Cravo fez para o amigo: Cariba, Meu Irmão, escrito poucos dias após a morte de Carybé. Emocionado, Mario pega o livro para recitar, mas é interrompido pela assessora, preocupada porque a leitura pode deixá-lo triste. Indignado, o escultor-poeta retruca: “E daí se vou ficar triste?! Meu papel é negar a tristeza!” Matéria Original Correio 24h Carybé e Mario Cravo dividiram amor pela arte e cultura baianaLeia também Exposição 'Bahia: Mistério e Mistura' põe cultura baiana em foco
Carybé e Mario Cravo foram apresentados por Mirabeau. |
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