A canjica já foi a alma da gastronomia das festas juninas, presente em nossas tradições desde a primeira metade do século XIX, possivelmente antes; o milho na brasa e a caninha também. E não faltavam na mesa pratos hoje banidos das festas de junho como o caruru e o vatapá. Bem mais tarde agregamos à culinária de época o amendoim, a laranja e os bolos de milho e de aipim. E substituímos a caninha pelos licores, o de jenipapo levou a fama de ser o preferido e não era. Os versos dos poetas, as chulas e rimas, os cânticos populares, as notícias dos jornais e revistas o ignoram, penso que seja um costume da década de 1920 em diante.
As festas juninas eram festas de família, celebrada em todas as casas, portas abertas para os vizinhos e conhecidos participarem da mesa e apreciarem as fogueiras armadas no quintal__ e, quem não tinha quintal, na porta de casa do lado de fora___ e as centenas de balões que subiam aos céus e inspiraram poetas e cantores populares e também compositores como nosso Assis Valente.
Os relatos de centenas de balões nos céus, assim como da deliciosa canjica temperada com flor de laranjeira, são hoje apenas lúdicas imagens para atiçar a nossa imaginação. Você leitor provavelmente nunca degustou a verdadeira canjica. Antes de prosseguir permitam-me uma pausa para compartilhar esta horripilante receita que pesquei na internet, dentre outras semelhantes. Repare nos ingredientes: 1 pacote de milho para canjica, 1 litro de leite, 1 lata de leite condensado, 1 pacote de flococo, 1 vidro de leite de coco, canela em casca, cravo da índia e canela em pó. Raciocine e embrulhe o estômago: o leite leva na sua composição difosfato de sódio e citrato de sódio; o pacote de milho para canjica, óleo de soja e sódio; o leite de coco, estabilizante, celulose e espessante. Melhor ficar por aqui.
Mesmo a canjica gostosa da vovó com coco ralado na hora e milho debulhado, está longe do sabor original. Aposto que a vovó não colocava um ingrediente considerado indispensável no preparo da canjica e o seu complemento: água de flor de laranjeira. Na Bahia as floradas de laranjeira eram no mês de maio, recolhiam-se as pétalas e secavam-se à sombra. Na década de 1930/40 a dita água era um dos ingredientes do Porongo, uma bebida do povão, mistura com a Jurubeba Leão do Norte. Tão essencial era a água das pétalas da laranja na receita que inspirou um ditado: “nasceu para a política como a água de flor de laranjeira para a canjica.
Manoel Querino, no seu clássico A Arte Culinária na Bahia, nos ensinou a preparar a legitima canjica. Tente preparar, vale a pena conhecer o verdadeiro sabor do prato: “ralam-se os cocos, cinco para vinte e cinco espigas de milho. Debulhados, ou melhor, retirados os grãos da espiga, cortando-os com uma faca e recolhidos em urupema (troque por um coador), depois de limpos, são ralados na pedra (troque pelo ralador). Depositada a massa em vasilha com água, os resíduos que vêm à tona são apanhados à mão e passa-se na urupema a massa contida na vasilha. Reservem-se as sobras que são novamente raladas na pedra, passadas e espremidas. A panela que recebe a massa é conservada em repouso por algum tempo, e, finalmente, escorre-se a água”.
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“Adiciona-se sal e leite de coco fraco à massa que ficou aderida ao fundo do vaso. Leva-se ao fogo e mexe-se incessantemente com uma colher até engrossar, se deita o açúcar para não embolar e quando estiver fervendo adiciona-se manteiga fina, leite de coco grosso, água de flor de laranjeiras e água de erva doce e cravo, fervidos aparte. Deixa-se cozer bastante até tomar ponto grosso. Quanto a canjica estiver fria é polvilhada com canela em pó”
Coma com gosto e lamba os dedos. (Por Nelson Cadena)
Publicado originalmente no Correio* edição de 21 de junho de 2019
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Redação iBahia
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