Era final dos anos setenta e início dos anos oitenta, e casais viravam manchetes em capas de jornais e revistas do Brasil inteiro. Naquele momento, o país vivia sob o impacto de uma série de crimes passionais envolvendo anônimos e celebridades. O mais barulhento de todos os casos foi o assassinato da socialite mineira Ângela Diniz, a Pantera de Minas, morta com cinco tiros na cabeça em uma casa de praia, na ilha de Búzios, no Rio de Janeiro, em 1976, às vésperas do Réveillon. O assassino confesso era o namorado dela, Doca Street, que, apesar de condenado num primeiro julgamento, logo foi liberado a cumprir pena em liberdade. A tese da defesa era de que ele teria agido em legítima defesa da honra e “matado por amor”. O argumento gerou polêmica a ponto de ser capa da revista Veja com o título “Um crime sem castigo”. A força dos protestos populares nas ruas, com cartazes, faixas e gritos de guerra, e o pedido de revisão do promotor levaram Doca a novo julgamento, em novembro de 1981, mais um curto-circuito no Brasil.
O escândalo foi tão grande que virou motivo de debate nacional sobre violência doméstica, e a intervenção urbana “quem ama não mata” apareceu nos muros de várias capitais. A população, sobretudo mulheres de diversas idades, queria mostrar que a sociedade não mais aceitava que homens tivessem direito de vida e morte sobre as mulheres. Logo, o culpado não conseguiu escapar da prisão. Pegou 15 anos, cumpriu três em regime fechado, dois no semiaberto, o resto em condicional. A teledramaturgia, esperta como sempre – se valendo da realidade e ficção, jornalismo e artes cênicas –, recorreu a esses e outros casos de crimes passionais para servir como mote do roteiro da minissérie ‘Quem Ama Não Mata’ (Globo, 1982). Havia interesse no público em relação ao assunto. A trama não tinha pretensão de mostrar o início da paixão dos casais, como pode ser visto na maioria das obras, mas tinha a intenção de mostrar que a rotina e a falta de diálogo, o ciúme e a possessão podem pôr fim a qualquer casamento, e até mesmo terminar em morte. Como era de se esperar, a minissérie teve um impacto enorme, se tornando um grande sucesso. Trinta e três anos depois, eis que ‘Quem Ama Não Mata’ serve como releitura para a minissérie ‘Felizes Para Sempre?’, no ar desde segunda-feira, 26, e que deve ficar na faixa nobre da Globo por dez capítulos. Escrita novamente por Euclydes Marinho, ‘Felizes Para Sempre?’, como questiona o título, ganha frescor ao fazer com que o público reflita sobre as dificuldades da vida moderna a dois, as dores do amor, a questão da convivência diária, do tédio, da fidelidade, da fuga da rotina, e do mercado de sexo de luxo. E são justamente as relações pessoais que dão a linha condutora da obra, que chamam atenção, que fazem o público enxergar que tem muito da verdade do cotidiano ali dentro. A narrativa gira em torno de casais que vivem de aparências. Entre eles estão Norma Drummond (Selma Egrei), ex-militante política, professora universitária, casada há 46 seis anos com o funcionário público Dionísio (Perfeito Fortuna), uma relação sem expectativa. Marília (Maria Fernanda Cândido) e Cláudio (Enrique Diaz), que se afastam após a morte do filho, vivem do sexo morno, até que decidem buscar ajuda em terapia. Em outra trama, Hugo (João Miguel) quer um bebê, mas a mulher, Tânia (Adriana Esteves), uma cirurgiã-plástica estressada, evita o quanto pode, tomando pílula anticoncepcional escondido. E por fim, Joel (João Baldasserini), casado com Susana (Caroline Abras), que anuncia para a família que eles vão se separar com o "maior amor do mundo", mas, sequências depois, não se conforma ao descobrir que a mulher tem um amante, daí passa a persegui-la e a enlouquecer com o amor doentio. No meio da crise dos personagens, haverá um crime passional, em que qualquer um pode ser vítima ou assassino. Todos os casais têm química e física. São tipos humanizados. As interpretações são de encher os olhos. Mas a surpresa fica por conta de Denise, personagem de Paolla oliveira, e ninguém tasca. Além de ter uma namorada na trama, Daniela, vivida por Martha Nowill, a prostituta, conhecida entre seus clientes como Dani Bond, se envolve com vários personagens. Solta, ousada, sensual, divertida e ao mesmo tempo dramática, quebra o estereótipo da prostituta pobre e burra. Fala bem, estuda moda, sabe tocar piano. As cenas em que ela aparece nua frontal, com calcinha fio dental preta, corpo definido, sem sutiã, e até mesmo mostrando os seios, despertaram a atenção do público e alavancaram a minissérie nas redes sociais. Comentários sobre o bumbum dela é o que não faltam. A atriz consegue, com esta bendita personagem, apagar os papéis de mocinhas insossas que foram interpretados até pouco tempo atrás nas novelas em que participou. A equipe de cinema, fruto da parceria com a produtora O2 Filmes, um tipo de negócio caro, deixa visível a mudança da linguagem que sempre foi tradicional à teledramaturgia da Globo. Fernando Meirelles, o diretor, faz bonito a cada capítulo. As inserções gráficas na tela da TV, para fazer acreditar ser mensagem de texto em aparelhos eletrônicos, não é uma técnica nova, mas é um acerto dos grandes. As cenas são ágeis, hiperativas. A fotografia traduz a beleza do texto. ‘Felizes Para sempre?’ é a volta por cima de Euclydes Marinho que nos últimos anos deu pra colecionar obras fracassadas como ‘O Brado Retumbante’ e ‘Desejos de Mulher’. Dono de um olhar sensível, ele sabe, como poucos autores, tratar da relação conjugal e os problemas que ela acarreta. Pelo visto até aqui, o texto soa natural, como não poderia deixar de ser. Ali se trata de mostrar uma Brasília distante do clichê que a TV e o cinema sempre apresentam. É claro que a política está lá. Seria irreal se não estivesse. Mas fica em segundo plano. Marinho prefere apostar em jovens que organizam manifestações pela internet e vão às ruas para mudar o país. Há nudez de amante por aplicativo que lembra o WhatsApp, há casais produzindo filminho amador íntimo, há conversa por webcam de tablete que lembra o Skype. Mais real impossível. O telespectador acha o lúdico bonito, mas gosta mesmo é do realismo. E em ‘Felizes Para Sempre?’ ele tem isso de sobra. *Com orientação e supervisão da repórter Marília Galvão
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