Alguns clubes do Campeonato Brasileiro vangloriam-se de nunca terem sido rebaixados, mas a história não é bem assim. De uma certa perspectiva, é correto afirmar que Flamengo e São Paulo, que disputaram a última decisão da Copa do Brasil, são os únicos que ainda não foram para a Segunda Divisão ou Série B. Mas, a interpretação muda um pouco quando se faz uma retrospectiva no tempo.
Até o comecinho deste século, o regulamento dos clubes participantes, com ou sem acesso e descenso, era definido praticamente às vésperas do início do campeonato e modificado sem muito pudores, a depender dos interesses esportivos, políticos e econômicos de poderosos dirigentes e cartolas que ditavam quem disputava e quem ficava fora dos torneios nacionais.
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Para tentar compreender o fenômeno é importante lembrar que a cultura do futebol forjada nos anos 1980 e 1990, logo após a criação da CBF a partir do seu desmembramento da CBD, foi marcada pela cultura de “virada de mesa” e dos “tapetões”, de regulamentos mal elaborados e dúbios, que deixavam muitas brechas pelas ambiguidades de interpretação, nomenclaturas esquisitas, ameaças dos clubes de boicotes aos torneios, muitas batalhas judiciais e brigas ferozes de poder entre os cartolas de federações e clubes mais poderosos - que fizeram o torcedor brasileiro se debruçar entre o legítimo e o legal. E é daí que nasce a lenda dos “Incaíveis”.
Flamengo deveria ter sido rebaixado já em 1987 e possivelmente em 2013
A primeira polêmica surge em decorrência da Copa União de 1987, pois o Flamengo e o Internacional deveriam ter sido punidos com o rebaixamento à Segunda Divisão, de acordo com o código disciplinar, por terem se recusado a disputar os jogos do quadrangular final contra Guarani e Sport.
Entretanto, o Rubro-Negro e o Colorado disputaram normalmente a Primeira Divisão de 1988, enquanto o Coritiba foi rebaixado, em 1989, porque se recusou a entrar em campo por não concordar com o horário do jogo de sua última rodada.
Uma manobra jurídica impediu a queda do Flamengo, em 2013. Ao final da última rodada, Náutico, Ponte Preta, Vasco e Fluminense estavam rebaixados, mas o Tricolor Carioca, que terminou na 17ª colocação, acabou se beneficiando de uma decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) - que puniu Portuguesa e Flamengo pela escalação irregular de jogadores.
Com a perda de providenciais quatro pontos (e não três, como de costume), o Rubro-Negro caiu da 11ª para a 16ª posição, uma acima da zona de rebaixamento, que ficou com a Portuguesa, que desceu da 12ª para a 17ª colocação.
Após o resultado negativo dos recursos na instância desportiva pelos dois times, a Lusa isoladamente recorreu à Justiça Comum, que obrigou a CBF a devolver os pontos perdidos pela equipe, anulando o resultado do STJD, mas a CBF cassou a liminar no Tribunal de Justiça de São Paulo. Dessa forma, num verdadeiro e bem desenhado “jogo de compadres cariocas”, os arquirrivais Fluminense e Flamengo, que então iria para a 17ª colocação caso a petição da Portuguesa tivesse êxito, mantiveram-se na Série A. O assunto até hoje rende debates acalorados sobre quem estaria com a razão nesse caso.
O rebaixamento do São Paulo no Estadual de 1990
O São Paulo caiu para a Segunda Divisão do Campeonato Paulista em 1990 e apesar das muitas negativas dos tricolores, basta analisar as ambiguidades do regulamento do torneio, assim como as matérias veiculadas na imprensa, os depoimentos gravados de jogadores e de técnicos, e até mesmo os ingressos nas mãos dos colecionadores, para constatar que o rebaixamento são-paulino não é obra de ficção dos torcedores rivais.
Quase 30 anos depois, em 2009, o próprio guia oficial do Campeonato Paulista daquele ano, distribuído pela própria Federação Paulista de Futebol (FPF), informou que o São Paulo não havia se classificado "nem na repescagem" e que tinha sido "rebaixado para a Segunda Divisão" na disputa de 1990, ignorando, portanto, o regulamento do campeonato que afirmava que não haveria rebaixamento naquele ano.
Dias depois, após protestos da diretoria do São Paulo, a FPF voltou atrás, renegando o seu próprio guia. Na época da queda são-paulina, apesar da alguns veículos de comunicação terem cravado o rebaixamento imediatamente e exposto os "truques" de nomenclaturas do regulamento (Grupo I e II da Primeira Divisão, por exemplo), outras publicações demoraram a admitir que havia uma maquiagem.
Até o próprio Almanaque do São Paulo, de Alexandre da Costa, confirma: “O São Paulo foi rebaixado no Campeonato Paulista de 1990 e, se não fosse uma ‘manobra nos bastidores’, não poderia disputar o título em 1991.”
Obviamente jogando um módulo muito mais fácil composto pelos 10 piores times do torneio anterior e pelos quatro recém-promovidos e indo para as fases seguintes com vantagem do desempate contra os que jogaram um grupo muito mais difícil, o Tricolor Paulista, não só avançou para a segunda fase como acabou, ironicamente, ficando com o Campeonato Paulista de 1991 e deu a arrancada para conquistar o Campeonato Brasileiro de 1991, e vencer a Libertadores da América e o Mundial duas vezes cada nos dois anos seguintes, além do Estadual de 1992.
A lenda do Santos como time de primeira caiu bem antes de 2023
A queda recente do Santos reacendeu uma polêmica antiga que alega que o time disputou o Campeonato Brasileiro, graças ao jeitinho brasileiro. Para contextualização, é importante lembrar que, no início dos anos 1980, nos primórdios da CBF, a Taça de Ouro era tida como a Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro e que, para participar da competição, as equipes deveriam ficar, no máximo, até a sexta posição de seus estaduais.
Caso não conseguissem, teriam que disputar a Taça de Prata, considerada a Segunda Divisão da época e que funcionava mais como uma repescagem dos piores dos torneios estaduais, pois previa o acesso no mesmo ano.
O Santos ficou em 12º no Campeonato Paulista de 1982, mas foi “convidado” pela CBF a entrar direto na Taça de Ouro de 1983.
Silvio Tudela
Silvio Tudela
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