Após uma certa idade, quase todo mundo tem uma resenha curiosa, triste ou divertida para falar de um determinado velório. E não seria diferente ao se relembrar das cerimônias de despedida de Edson Arantes do Nascimento.
Todo mundo - seja porque não gosta da pessoa, tem medo de gente morta ou sente um desassossego físico e espiritual - tem o legítimo direito de não ir a qualquer lugar que não lhe faça bem, principalmente quando lembra a morte. Mas, não estamos tratando de algo ou de alguém comum neste caso, mas de Sua Majestade, o Rei Pelé! Embora todo ser humano mereça o mais profundo respeito em sua partida, foi muito constrangedor o nível de discussão que se desenrolou nos funerais do Atleta do Século.
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Nas 24 horas de velório aberto ao público, foram pouquíssimos os ex-jogadores de futebol que estiveram presentes para prestar-lhe uma última homenagem ou manifestar empatia com a família do único atleta, praticamente em 100 anos, a conquistar uma Copa do Mundo. Dos que vieram depois do Tricampeonato conquistado graças ao Rei, nenhum tetra ou pentacampeão demonstraram a grandeza de se deslocar à Vila Belmiro - exceção feita a Mauro Silva, talvez mais por ser o atual vice-presidente da Federação Paulista de Futebol.
Também bizarros foram os comentários nas redes sociais de que o homem Edson Arantes do Nascimento estava colhendo o que plantou com a Lei do Retorno por não ter reconhecido de imediato e nem ter ido ao enterro da própria filha Sandra Regina. Partiram para o descaso mesmo ao questionar se os jogadores eram obrigados a comparecer aos chatos velórios só porque praticam o mesmo esporte, se haveria lista de presença a ser conferida pelo defunto, ironizando quantas vezes o falecido convidou-os para um evento em sua casa, como um churrasco ou uma festa.
Houve quem passasse pano para a deselegante situação, justificando que muitos jogadores brasileiros prestaram homenagens em suas redes sociais, que o atleta morreu muito próximo do Réveillon e do Ano Novo [como se houvesse data certa para o fim de todos nós], que muitos vivem ou estavam com compromissos ou em férias no exterior [com jatinhos particulares, muito dinheiro e disposição para cruzar o Atlântico por uma simples balada, diga-se] e que muitos, esquecidos na maioria, só foram a Santos (SP) para aparecer na imprensa.
A mídia também fez seu showzinho nas extensas reportagens [já prontas e na gaveta, evidentemente] que mostravam a história do jogador, suas lutas e conquistas, sua vida para além do esporte, suas contradições como pessoa e a repercussão de sua morte na imprensa internacional.
Quando o conteúdo se esgotou, jornalistas e especialistas criaram as listas de ausência no velório com jogadores e ex-jogadores que hipocritamente pediram respeito aos campeões brasileiros na Copa do Mundo do Qatar, colegas de profissão, treinadores de futebol [alô, Adenor Bacchi], dirigentes de clubes rivais.
O recibo final de vergonha alheia foi a transmissão do cortejo fúnebre e do sepultamento, com dados de péssimo gosto, como expectativa de vida no Brasil e os momentos dolorosos no final da vida do jogador. Não faltou um “viveu muito para os padrões de seu país e finalmente descansou”. Foi ridículo.
Há ídolos e ídolos, evidentemente, assim como as circunstâncias de suas mortes. Em 1994, na despedida precoce de Ayrton Senna, multidões perplexas tomaram as ruas por onde passou o cortejo com o caixão, fizeram filas intermináveis para um último adeus no velório na Assembleia Legislativa de São Paulo, e um congestionamento de helicópteros se via até onde a vista alcançava.
No alto do carro aberto do Corpo de Bombeiros, as homenagens se multiplicavam. Em automóveis particulares e oficiais, vans e ônibus era possível ver pilotos ativos e inativos de Fórmula 1, assim como dirigentes e chefes de escuderias. Eu vi Alain Prost, o adversário mais ferrenho do brasileiro, visivelmente emocionado, abraçando-se a outros pilotos, assim como Xuxa Meneghel e Adriana Galisteu, as ex-namoradas amada e odiada respectivamente pelos fãs do piloto, seguindo em silêncio e respeito até o cemitério.
Sim, os tempos eram outros, mais ritualísticos, menos virtuais e naturalmente mais conectados afetivamente, e o piloto se foi no auge de sua profissão, jovem e de forma trágica, o que pode ter bagunçado um pouco as comparações acerca da partida de Pelé, já idoso e frágil, aposentado dos gramados há mais de 40 anos, e sem o peso de uma morte trágica e transmitida ao vivo, mas entre seus familiares.
Senna foi uma lenda e um farol de genialidade no seu esporte, mas não deixou legado algum na F1, além da rediscussão sobre a segurança nas pistas. Seus herdeiros Rubens Barrichello e Felipe Massa não chegaram aos pés do icônico piloto e não há no horizonte nada que nos sinalize para um brasileiro ousado, inventivo, corajoso e vencedor nas pistas e no topo dos pódios.
Pelé foi mais! Quando o Brasil ainda remoía o Maracanazzo e vivia intensamente a síndrome de vira-lata, o garoto de 17 anos reinventou o futebol
que até então era jogado, colocou a arte e o espetáculo na centralidade da cena, subverteu números e recordes sem parar, levou o seu time e o seu talento para excursionar pelo mundo e exibir a beleza do futebol brasileiro. Interrompeu guerras, encantou gerações em todo um mundo ainda não globalizado e conectado. Como um visionário, abriu em definitivo a possibilidade para que uma legião de jovens brasileiros pudesse sair da miséria, enriquecer muito, empoderar-se e ganhar respeito pelo mundo como jogador de futebol. Não fez isso sozinho, certamente, mas o fez como um jovem preto que foi celebrado no planeta por líderes e soberanos como Rei.
Para quem questionou de forma simplista apenas uma morte, dizendo que a adoração a um ser humano era uma bobagem e que Jesus Cristo é o verdadeiro Rei da Glória, Eterno e Imortal, lamento dizer que você não entendeu o que isso ainda significa. Dói ter que refletir sobre o óbvio e afirmar que não estamos falando da mesma coisa, de seres humanos com habilidades especiais e metáforas que existirão para sempre.
Talvez ninguém realmente esteja preocupado com quem morre e que vivemos mesmo num mundo de cada um por si, infelizmente. Apesar de sabermos que quem consagra os ídolos é o povo e não os jogadores ou as celebridades, o torcedor esteve lá, num último adeus, transcendendo qualquer rivalidade clubística e consciente de que há jogadores possivelmente magoados com os comentários do Rei Pelé quanto ao amor pela bola, pelo futebol e pela Seleção Brasileira. Talvez considerem uma ingratidão com tudo o que ele fez ou, quem sabe, uma simples ignorância com a dimensão de quem partiu. O jogador foi um ícone e deixa seu legado para sempre, até para aqueles que não o compreenderam como o Edson e o Pelé – distinção que ele adorava fazer e irritava muitos. Em seu último capítulo, talvez no último minuto da prorrogação, podemos até considerar que Edson Arantes do Nascimento recebeu uma grande homenagem, mas o Rei Pelé infelizmente não.
Talvez o Brasil não tenha merecido ter um jogador para ser seu Rei! E certamente jamais terá outro!
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Sílvio Tudela
Sílvio Tudela
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