Uma das principais características do Pop da Bahia, que tem ocupado posições de destaque no midstream brasileiro, é a sua relação íntima com as pautas da negritude, especialmente no aspecto antirracista e do tema da ancestralidade. Luedji Luna é uma das artistas da cena que traz no seu trabalho essa relação, e a aborda num viés mais político e pedagógico.
Desde o seu primeiro trabalho, a cantora e compositora se utiliza de elementos da militância negra que aprendeu em casa com os pais. A ideia central é que a população negra do contexto atual está conectada aos povos africanos escravizados por uma série de processos de exclusão, discriminação e precarização.
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Por ser filha de um casal que se conheceu na militância do movimento negro, Luedji talvez seja a artista da cena que tenha uma relação mais direta a produção acadêmica dos estudos étnicos-raciais e demonstra trazer consigo uma carga de aprendizados cotidianos e leituras teóricas que se misturam e formam seu posicionamento bastante contundente.
Já no videoclipe de Um Corpo No Mundo, seu primeiro trabalho a ganhar visibilidade depois de viralizar no Facebook no final de 2016, a cantora trata do seu corpo negro que está interligado a diversos processos de violência: “eu sou a minha própria embarcação / a minha própria sorte”, diz a letra da canção.
Metáfora do retorno
Contudo, é no clipe de Banho de Folha, de 2017, que a cantora e compositora explora a metáfora do Atlântico, como trajeto de uma travessia forçada – e que evoca justamente a questão da ancestralidade. A artista constrói uma cena que remete aos monumentos Porta do Não Retorno ou Porta Sem Retorno, que estão na ilha de Gorée, no Senegal, e na cidade de Uidá, no Benim. Ambos fazem referência à memória daqueles sequestrados para alimentar o tráfico negreiro.
No clipe de Banho de Folha, Luedji cria em Salvador uma espécie de Porta de Retorno, para representar a conexão entre a luta contra a precariedade da população negra no contexto atual à luta pela sobrevivência dos povos escravizados. O retorno, representado na cena pelo Oceano Atlântico, seria uma forma de demonstrar a vitória contra o extermínio da população negra até aqui e a possibilidade de seguir vencendo.
No álbum visual Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, lançado em 2020, ela volta ao tema e a referência ao Atlântico permeia toda a narrativa. A imagem do oceano no trabalho representa fluxos e movimentos, mas também indica o retorno simbólico à África, como uma conexão inquebrável.
Quais humanos contam como humanos?
Quando falo em precariedade me refiro à condição de corpos que estão expostos às diversas formas de opressão, violência, assédio, desvalorizações. Corpos que destoam da norma neoliberal/patriarcal/heteronormativa e, por que não, colonial... A precariedade desenha, assim, corpos precários, de vidas precárias que têm subjugados pela normatividade o seu direito de aparecer.
Assim, a “mera” exposição desses corpos e suas vidas são atos políticos, pois enfrentam a norma opressora pelo “simples” fato de reunir-se e disputar o espaço público. É a precariedade, então, que estabelece o elo entre os povos africanos e indígenas escravizados na colonização da América Latina à população negra e indígena do contexto atual.
É a partir da ideia de precariedade que a ancestralidade se concretiza no trabalho de Luedji Luna. Como provoca Judith Butler: quais humanos contam como humanos? Uma pergunta que me remete às diferentes formas que a hierarquização da diversidade humana (ou seja, o racismo) já buscou retirar a humanidade dos corpos não-brancos.
Em relação aos povos negros, que me interessam mais especifica-mente aqui, passa desde o mito bíblico de Cam como justificativa para a primeira fase da escravização de povos africanos, no século XVI (alimentado as portas do não retorno); pelo racismo científico e o argumento pseudocientífico da inferioridade negra; até chegar no racismo velado que conforma a experiência da população negra brasileira atualmente. Todas essas são formas que historicamente tornaram e ainda tornam a vida dos corpos negros em uma vida precária.
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Marcelo Argôlo
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