Letieres Leite foi e é uma das principais inspirações para o meu trabalho de pesquisa sobre a música pop negra, especialmente o Pop da Bahia. Suas ideias sobre a importância das claves, sua defesa da matriz afro para toda a música brasileira e a valorização da música sacra do candomblé são valores que aprendi com ele nas entrevistas e conversas informais e trago comigo nos meus projetos. Sua morte tão repentina deixou um legado, mas também o lamento de não poder mais contar com sua pulsão crítica e criativa.
De todos os ensinamentos que Letieres Leite nos deixou, o que mais inspirou meus projetos, foi a frase que o cantor e compositor pernambucano Zé Manoel eternizou em disco: “toda música brasileira é afro-brasileira”. É por causa desta certeza, de que não há música brasileira que não esteja vinculada às matrizes afro-brasileiras, que me proponho a pensar como se constrói um Pop Negro.
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O músico passou os últimos anos da sua vida e carreira envolvido na missão de valorizar e visibilizar as heranças negras, que estruturam toda a música brasileira. A Orkestra Rumpilezz e o projeto Rumpilezzinho foram as suas principais formas de levar a cabo a missão, mas ela esteve presente em todas as suas produções. Era justamente essa característica, aliada ao resultado musical que entregava, que o tornaram um dos produtores e arranjadores mais requisitados no Brasil.
No mês de dezembro, no dia do primeiro aniversário Letieres Leite após sua morte, começamos a conhecer o último projeto do maestro que lançou com a Rumpilezz. Naquele dia 08 de dezembro de 2021, foi lançado um single do álbum “Moacir de Todos Os Santos”, uma homenagem a outro maestro, o pernambucano Moacir Santos (1926-2006). Agora, no final de maio deste ano, finalmente pudemos ouvir o álbum completo.
O repertório do álbum, que está disponível em todas as plataformas e também em LP, contempla 7 dos 10 temas de “Coisas” (1965), estreia fonográfica de Moacir. O trabalho ainda traz a participação de Raul de Souza (1934-2021), que toca trombone na “Coisa nº 4”; e Caetano Veloso, que canta na faixa “Nanã - Coisa nº 5” (parceria de Moacir com Mário Telles).
Além do disco, temos a oportunidade de celebrar o legado de Letieres nesta quinta (09) no encerramento do “Festival Rumpilezz II - Honra ao Rei”. O evento acontece no Teatro Castro Alves e já está com os ingressos esgotados. Quem conseguiu garantir um lugar dentro da Sala Principal, vai poder curtir uma homenagem ao maestro com apresentações do Coletivo Rumpilezzinho, Letieres Leite Quinteto e Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz e as participações de Margareth Menezes e Nara Couto.
Legado do maestro que dançou
O maestro que dança! Foi assim que o jornalista Ramiro Zwetsch sintetizou perfeitamente o estilo de Letieres Leite em uma reportagem para a Revista Trip. Apesar do reconhecimento que recebeu de figuras como Maria Bethânia e Caetano Veloso, Letieres Leite rejeitava o título de maestro. O músico preferia ser chamado de instrumentista, compositor e arranjador – ou mesmo de professor. “Não tem nada a ver com o que eu faço. É um conceito muito europeu”, afirmou Letieres em entrevista que me concedeu em 2019.
De fato, o maestro como a figura central da orquestra e responsável pelo desempenho musical é uma construção branca e europeia. A condução de Letieres passava por esse lugar, mas a liberdade de improviso que os músicos da sua Orkestra tinham, junto com a fluidez da sua condução, o afastaram da rigidez do maestro tradicional. Para Letieres Leite, tudo partia do ritmo – as tais das claves, que ele tanto comentava. Podemos afirmar ainda que Letieres tinha como missão construir uma consciência rítmica na formação acadêmica em música.
“O ritmo sustenta toda a música ocidental baseada na diáspora negra. Então, eu estou falando praticamente de todas as músicas populares: rap, samba, jazz, frevo, baião, tango… Praticamente, toda a música popular do século XX para cá foi reconstruída pela população diaspórica”, afirmou durante a mesma entrevista. Por isso, ele rejeitava a posição de maestro, pois a sua regência não estava na batuta, estava na dança; e sua principal forma de comunicação não era a partitura, era a oralidade.
A Orkestra Rumpilezz foi o principal projeto com o qual Letieres levou sua missão à frente de construir uma consciência rítmica. A formação de big band de percussão e sopros, que ele montou em 2006, traz no nome um jogo de palavras que sintetiza o conceito musical: rum, rumpi e lé, nome dos três atabaques tocados pelos alabês nas cerimônias do candomblé, e que fazem parte da instrumentação da Orkestra; mais o zz de jazz
Não é apenas no som que a Rumpilezz surpreende. O figurino e o posicionamento dos músicos no palco tinha muito a dizer sobre a missão de Letieres. As orquestras organizam sua formação praticamente da mesma forma desde o século 18, com os instrumentos de corda na frente do palco, seguidos pelos instrumentos de sopro e com a percussão ao fundo.
A Orkestra, por sua vez, subverte a tradição europeia e coloca os sopros, dispostos em formato de ferradura, atrás da percussão. Em trajes “despojados”, com camisa regata, bermuda e sandália, os instrumentistas de sopro criam uma sala de estar na frente do palco, que é ocupada pelos instrumentistas da percussão vestidos em trajes de gala.
“Quando voltei da Europa já tinha claro que queria fazer um trabalho dessa natureza, até que juntei os músicos no Teatro Gamboa para fazer uma experiência. Coloquei vários músicos [improvisadores de jazz] tocando com alabês e ali surgiu a Rumpilezz, quando vi todo mundo tocando no último dia.”, afirmou em entrevista ao site El Cabong.
Em 2009, saiu o primeiro álbum da Orkestra Rumpilezz, que apresenta temas instrumentais organizados a partir da consciência rítmica que Letieres propõe. Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, lançado pela Biscoito Fino, estabelece uma ligação com a tradição e traz os toques do candomblé de forma mais pura.
A consolidação nacional veio com o segundo álbum, A saga da travessia, lançado em 2016 pelo Selo Sesc. Nesse trabalho, os temas criam uma linguagem contemporânea a partir da composição e sobreposição dos toques do candomblé para construir uma narrativa sobre a diáspora africana.
O músico manteve ainda o Letieres Leite Quinteto, junto com Luizinho do Jêje (percussão), Ldson Galter (contrabaixo), Marcelo Galter (teclados) e Tito Oliveira (bateria). O grupo atuou por mais de 10 anos, mas gravou apenas um disco, que mostra as possibilidades da consciência rítmica.
Outro espaço fundamental para difusão da consciência rítmica proposta por Letieres Leite foi o projeto Rumpilezzinho. Nele, o músico desenvolveu seu lado educador e formou jovens músicos a partir do método que ele desenvolveu e chamou de Universo Percussivo Baiano (UPB).
No livro Rumpilezzinho Laboratório Musical de Jovens: relatos de uma experiência, lançado em 2017, Letieres define o UPB como um método que busca ensinar música popular brasileira a partir da consciência de um conceito estrutural ligado às suas matrizes negras, e que obedeça às regras de organização construídas na oralidade durante séculos.
“Os terreiros de candomblé são grandes universidades de produção e preservação da música negra no Brasil. Dentro desses espaços, os toques seculares resistiram a toda a perseguição e se mantiveram bem preservados. E isso se deu através da oralidade”, explica em um trecho do livro. A oralidade tem um papel central neste processo, que é subjugado na formação musical eurocentrada, que privilegia a escrita musical da partitura.
“O Rumpilezzinho é exatamente o laboratório musical dos jovens. O laboratório dessas ideias que eu juntei e dessa impossibilidade que eu vejo nas academias, de estudar a partir desse rigor rítmico. Lá o aluno ou aluna chega e já trabalha a oralidade em comum acordo com a música escrita, com a música da partitura. Então a gente não tem uma que subjuga a outra.”, afirmou Letieres em entrevista ao site El Cabong.
E, apesar da centralidade do ritmo, a formação oferecida na Rumpilezzinho não tinha aula de percussão. Letieres dizia que não tinha nada para ensinar aos percussionistas. “O curso não tem a matéria Percussão. Eu me comunico com todos os instrumentos, menos com ela, pois é o meu objeto de observação. Seria uma contradição ter essa matéria”, disse na entrevista de 2019.
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Marcelo Argôlo
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