Quem de fora vê seu Mariano Xavier, um senhorzinho elegante que caminha pelas ruas do Candeal Pequeno, e escuta tanta gente chamando-o de meu vô não tem ideia da história que esse homem carrega dentro de si. Nem tão pouco a influência que ele exerce na vida desses jovens nascidos e criados nesse quilombo urbano.
No domingo do Dia dos Pais, 13 de agosto, o Candeal festejou os 89 anos do vô tão querido e amado pelos moradores. Maru, como é chamado por muita gente, é um griô - aquele que transmite ensinamentos de geração em geração, com a identidade própria de um povo.
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Ele nasceu na Ladeira da Praça, Centro Histórico de Salvador, em março de 1934; e se mudou para o Candeal na década de 50. Ao longo da vida constituiu família, amou muito, encantou mulheres, teve 23 filhos (17 estão vivos) e uma infinidade de netos e bisnetos.
Cultuou o território do Candeal, cuidou do lugar como se fosse sua casa. Na época era tudo mato, nem energia elétrica tinha, saneamento básico muito menos, “mas era bom”. Ele cruzava a cidade “em busca de festas, trabalho”. Não é que o Candeal não oferecesse, mas o espírito de aventureiro falava mais alto.
Para Seu Maru só o fato de morar em um lugar que respira música já vale a pena. Não se sabe muito coisa da história do Candeal. Há quem diga que em 1769, o casal Manuel Mendes e Josefa de Santana, negros libertos vindos da Costa do Marfim, teriam chegado por lá à procura de parentes que teriam sido vendidos e escravizados na Bahia.
Outras informações dão conta de que foi um casal de portugueses, que chegando à Bahia, compraram as terras do Candeal. Prometo que vou procurar mais detalhes no Arquivo Público pra contar melhor essa história. O certo é que o Candeal tem herança africana como muitos bairros de Salvador. Teria o Candeal DNA da Costa do Marfim?
O país fica no Continente Africano, é o maior produtor de cacau do mundo, mas voltemos a falar do Seu Mariano. Entre uma conversa e outra, ele conta que foi amigo do sambista Riachão, que Carlinhos Brown frequentava a casa dele, faz elogios ao artista e conta como conversavam sobre música.
Homem com princípios de melhorar o mundo, que tinha consciência de cidadania, sem nem saber o que significava, aprendeu com os mais velhos para em seguida ensinar aos mais novos sem discursos elaborados. Mas, com o sentimento de pertencimento. Na época, o Candeal era mato. Cada morador tinha uma farmácia no quintal, plantava cidreira, bezentacil, hortelã grosso, boldo e tantos outros para curar seus males físicos.
Do jeito dele, descobriu um outro lado: ter qualidade de vida. Dinheiro não era problema. Seu Maru era um faz tudo: pedreiro, marceneiro, reciclador, artesão. Percebeu que a vida deveria ser vivida em sua plenitude, mas com moderação. Não se achava um homem bonito, mas vivia rodeado de mulheres e para isso tem uma explicação: “ acho que era porque eu trabalhava muito, nunca rejeitei trabalho”.
Seu Maru ama a natureza e incutiu isso na cabeça da garotada. Gosta de plantas, tem sentimento de pertencimento, zelo pelo lugar onde mora até hoje. Ele conta, com um sorriso largo, como era sua vida na juventude: gostava de dançar, tinha um professor em casa, um irmão bonito e elegante que, além de dançarino, era alfaiate. Até hoje lembra do Seu Valdemar e das roupas bonitas que ele fazia, umas batas africanas.
As lembranças vão brotando: “Eu contratava uns músicos da Vasco da Gama para tocar aqui em casa, que ficava cheia dos parentes e amigos. Aqui no Candeal todo mundo é família, é um lugar de festa. Todas as datas são comemoradas”.
Seu Mariano e família moravam na rua Francisca Romana, uma ladeira íngreme, inclinada e alta, difícil de subir em dia de sol e pior ainda no inverno. As pessoas passavam tentando se equilibrar e muitos escorregavam e caíam. Ele improvisou uma escada de madeira com pedaços de pau. Anos depois a Prefeitura construiu uma escadaria de cimento.
O lugar se tornou ponto de encontro dos moradores e artistas do bairro. A escadaria mudou de nome, foi batizada pelo cantor Bebeto, irmão de Xexéu, de Escadaria do ZAP, ou seja, leia-se de traz pra frente: PAZ. O nome pegou.
Pra melhorar, a mosaicista Mel Xavier, filha de seu Maru, fez um curso de mosaico com um grupo de italianos na Paróquia de Valéria Palestina. A primeira coisa que veio à cabeça de Mel foi espelhar a Escadaria da PAZ com mosaicos. Ficou linda e virou referência.
Os turistas e até baianos param pra tirar foto e levar de lembrança a imagem dessa obra de arte. Mel contou com a ajuda das senhoras da Paróquia Valéria Palestina e ex-moradores que vivem no interior ou fora do Brasil. E foi na Escadaria da Paz, que foi festejado o aniversário de seu Maru com a participação do neto Sinho, MCs, DJs, sambistas e a banda de rock Os Pretos do Bairro, comanda por Gato Preto.
Todos subiram ao palco emocionados, para vibrar pelo homem que deu aulas de sabedoria pra todos eles. Todas as honrarias foram feitas. Seu Maru chegou devagar, todo de branco, calçando um chagrin - uma sandália de origem africana.
O senhorzinho elegante foi abraçado e abraçou seus alunos da vida. Por alguns minutos o público parou de dançar para ouvir os artistas falando do respeito e reconhecimento que tem a Seu Mariano. Imagino que deve passar um filme na cabeça dele.
Um homem que viu o quilombo urbano se transformar por meio da música. Seu Mariano exibe um pandeiro que foi seu companheiro em muitas noitadas. O fotógrafo Edgar de Souza pergunta a Seu Maru se quer chegar até os 100 anos. Ele diz que não com um sorriso encantador. "Sabe, vou lhe contar. Acho que uma coisa uma vez, uma voz soprou no meu ouvido e disse que eu ia viver 127 anos. Eu ouvi. Acho que pode acontecer sim”. Que assim seja, Seu Maru!
Wanda Chase
Wanda Chase
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