Uma jovem caminhava por uma rua do bairro onde mora quando ouviu o choro de um bebê. Percebeu que os gritinhos agudos vinham de um amontoado de sacos de lixo. Se aproximou e avistou uma toalha rosa, meio desbotada, meio alaranjada, toda amassada. Chegou ainda mais perto e notou que, embolado naquele pano velho, havia um bebezinho sem roupa, com o corpinho frio e ainda preso ao cordão umbilical. A jovem parou um motorista por aplicativo que passava por ali levando uma passageira e ambos lhe ajudaram a chamar a polícia e a socorrer o garotinho para um posto de saúde. Foi na Boca do Rio, em Salvador, sexta-feira passada.
É de deixar qualquer um ardendo de dor ao imaginar o que sentia aquele bebezinho em suas primeiras horas de vida, já abandonado, completamente desamparado naquele novo mundo fora do calor e do aconchego do útero materno. Com ruídos estranhos, sensações desconfortáveis e o completo desconhecimento do que estava acontecendo. Imagina a angústia de sentir tudo isso, chorar, se desesperar, e ninguém vir ao seu socorro?
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Em suas primeiras horas de vida, esse bebezinho enfrentou a rejeição, o abandono e um grande risco de vida. Um ser completamente inocente, frágil, deixado ainda mais vulnerável, desprotegido e completamente indefeso.
Como entender uma coisa dessa? Dá pra entender?
Quem estuda o assunto diz que os abandonos de recém-nascidos são provocados, principalmente, ou por uma condição patológica da mulher que acabou de parir ou por questões sociais.
As mulheres, depois do parto, passam por um período bem delicado, o puerpério, em que ocorre uma verdadeira revolução hormonal, provocando severas alterações de humor e de comportamento. Dentro desse processo, uma em cada quatro mulheres desenvolve depressão pós-parto, que pode reprimir o afeto pelo bebê e as alegrias. Há, também, a psicose puerperal, a forma mais grave de rejeição ao bebê, em que a mãe pode ter delírios, alucinações, confusão mental e colocar em risco a própria vida ou a da criança.
Some-se a isso o frequente abandono paterno de bebês antes mesmo de seu nascimento. Assim, uma mulher com esses transtornos pode não receber os cuidados necessários e o bebê acabar desprotegido, já tendo sido ambos (mulher e bebê) abandonados pelo genitor.
Na minha época de repórter, acompanhei um caso de abandono de bebê. Também no lixo. “Que espécie de pessoa abandona um bebê indefeso no lixo?”, eu pensava enquanto lia a pauta. Naquele caso, a mãe tinha sido presa e eu fui até a delegacia colher informações e tentar entrevistá-la. Ao chegar, vi a mulher sentada, costas curvadas, cabeça baixa e olhar perdido. Ao redor dela, estavam três crianças, suas filhas.
Descobri que essa moça tinha transtornos mentais. A gravidez foi fruto de um dos estupros do próprio pai, um homem que tinha largado a família e, anos depois, voltou e passou a violentar física e sexualmente a própria filha. Ela não contou para ninguém da gravidez. Pariu em casa sozinha e, logo depois, levou o bebê ao lixo. Para ela, olhar para a criança era olhar para as violências que sofreu. O bebezinho era uma lembrança real da violência que ela precisava esquecer.
Eu não tenho como afirmar o que levou aquela mulher a abandonar o próprio filho, se foram os hormônios, o transtorno mental ou a clara situação de violência e vulnerabilidade social que ela vivia com os filhos. Mas certamente nada disso pode ser ignorado. E pergunto também:
Imagina a angústia de sentir tudo isso, chorar, se desesperar, e ninguém vir ao seu socorro?
Eu fiquei destruída naquele dia. Vi que aquela mulher, algoz de seu filho vulnerável, era ela mesma também vítima e vulnerável.
A mãe que abandona, na maior parte dos casos, é também uma pessoa necessitada de cuidados. Sejam psicológicos, sejam de uma rede de apoio ou de políticas públicas.
A mãe do recém-nascido que abriu o texto ainda não foi encontrada e não se sabe sua história. Eu não tenho ideia de que pessoa ela é, não tenho ideia do que ela passou, do que viveu, do que a levou a abandonar o próprio filho.
Para este bebê, eu desejo que ele possa ser acolhido e cresça num lugar em que seja muito cuidado, que se sinta muito amado, que esse início de vida em nada afete a sua capacidade de crescer, sonhar e ser feliz.
Para nós, fica a lição de perceber que cada história tem muito mais nuances do que parece. Que conhecer outros olhares nos dá uma melhor compreensão da realidade. Que a vida é muito mais complexa do que a gente pode imaginar.
Jéssica Senra
Jéssica Senra
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