icone de busca
iBahia Portal de notícias
CONTINUA APÓS A PUBLICIDADE
O olhar dela

Se traição for motivo para matar, quantos homens vão sobrar?

Na coluna desta semana, Jéssica Senra fala sobre o assassinato da cantora gospel Sara Mariano e a violência sofrida pelas mulheres

foto autor

Jéssica Senra

01/11/2023 às 10:00 - há XX semanas
Google News iBahia no Google News

Depois de três dias desaparecida, a cantora gospel Sara Mariano foi encontrada morta e seu corpo carbonizado num matagal na região metropolitana de Salvador.


				
					Se traição for motivo para matar, quantos homens vão sobrar?
Ederlan Mariano confessou ter matado a esposa após descoberta do corpo pela polícia. Foto: Reprodução/Instagram

O marido, levado para a delegacia, confessou o crime. Teria dito que Sara Mariano tinha relacionamentos extraconjugais. Uma narrativa clássica nos casos de violência contra a mulher: difamar a vítima e transferir para ela a responsabilidade pelo crime.

CONTINUA APÓS A PUBLICIDADE

Leia também:

A vítima passa a ser culpada pela própria morte. Difamar a vítima é sempre um jogo sujo. Pior ainda é quando ela não tem como se defender.

Mas por mais absurdo que seja, alegar uma suposta legítima defesa da honra é um argumento que já foi muito aceito pela Justiça. É uma distorção da tese de legítima defesa, quando se entende que não há crime se a pessoa estiver se defendendo ou defendendo alguém de uma agressão.

No caso, homens alegavam que cometeram crimes contra mulheres defendendo a própria honra, atingida por um comportamento da vítima, a exemplo de uma traição. Com isso, conseguiam abrandar a pena ou se livrar totalmente da punição. Um retrato do chamado machismo estrutural.

Eu sempre pensei que, se esta tese fizesse sentido e mulheres passassem a defender a própria honra, atingida constantemente pelo frágil ego masculino, não sobraria muito homem pra contar história. Se traição for motivo para matar, quantos homens você acha que vão sobrar?

Para a sorte deles e avanço para nós, o Supremo Tribunal Federal já declarou inconstitucional o uso desta tese. Mas este texto não é uma discussão jurídica.

Sara Mariano queria se separar. Sendo uma cantora gospel, se divorciar é uma atitude condenada no meio em que ela vivia e trabalhava. Mas aquele casamento estava tão insuportável para ela que estava disposta a enfrentar o estigma. Disse à mãe que já tinha juntado cerca de 20 mil reais.

Ao revelar à sogra a intenção de se separar, teria sido desaconselhada porque o marido a mataria se fizesse isso. Ele já havia ameaçado a esposa de morte antes. E estaria planejando comprar uma arma, segundo a negociação por telefone que Sara relatou ter escutado.

Sara Mariano disse a familiares e pessoas próximas que era agredida pelo marido. Que era ameaçada. Que era violentada sexualmente. Que as violências aconteciam inclusive na frente da filha do casal, uma criança de 11 anos. Segundo Sara, o marido bebia muito, chegava em casa violento e forçava a esposa a ter relações sexuais.

Um dia antes de desaparecer, Sara enviou para a mãe uma mensagem dizendo que tinha algo muito sério para contar. Na noite seguinte, estava morta e carbonizada. O marido, que havia registrado ocorrência na delegacia por causa do sumiço da esposa, reconheceu o corpo e, segundo a polícia, confessou o crime. A mãe acredita que o marido possa ter ouvido a mensagem e descoberto os planos de separação.

Há na internet um vídeo do marido e suspeito de ter assassinado Sara numa entrevista a um podcast. Acontece o seguinte diálogo entre ele e a apresentadora:

-A senhora aconselharia as mulheres que estão assistindo a esse podcast... que se alguma delas o marido bateu, xingou, botou o dedo na cara, ameaçou, e espanca ela, não deixa ela sair de casa, amarra ela dentro de casa, bate, a senhora aconselha ela o que?

No que ele mesmo responde:

-Vá pro joelho, minha filha. – sugerindo que a mulher deva orar.

A entrevistadora, com toda a lucidez e firmeza, responde na lata:

-Quando o cara bate, é 190!!!!, se referindo ao número de denúncia da polícia.

-Não é o Monte não?, ele pergunta, se referindo ao costume religioso, inspirado em Jesus, de ir orar no monte para ficar mais perto de Deus.

-É um monte de viatura pra pegar ele!!, ela responde.

-Mas se chamar o pastor e o pastor disse que é melhor orar?, ele insiste.

-Se o pastor mandar orar com meu marido me espancando, eu vou ligar pro 190 e vou mandar o pastor ir junto! Porque o pastor está me mandando ser omissa a uma agressão. E Deus não me chamou pra ser agredida não. Se alguém abrir a Bíblia e disser que a mulher tem que ser omissa e o homem tem que ser rude e tratá-la do jeito que ele quer, eu deixo de ser crente hoje.

É isso.

Agredir é crime. Ponto.

O marido bate na esposa, xinga, bota o dedo na cara, ameaça, espanca, não deixa sair de casa... E é a esposa que tem que ajoelhar e pedir a Deus para o marido melhorar?? Ela que deve permanecer ao lado do agressor criminoso sendo violentada e orando para ele mudar a conduta? Olha o machismo aí atuando e ainda usando o nome de Deus para manipular.

Em vez dele mesmo ir procurar ajuda e tentar remediar, em vez de se esforçar para ser um bom marido, ele atribui a ela a responsabilidade de ir rezar. Assim, ele vai poder continuar agredindo e ainda poderá culpá-la por não ter ajoelhado o suficiente.

Ao agredir a esposa, o marido já está descumprindo os votos do casamento. É o marido que desfaz o laço matrimonial ao bater, ao violentar sexualmente. Ali o casamento se corrói. E a culpa não é da mulher que não orou nem edificou seu casamento. A culpa é do marido que descumpriu a promessa de cuidar e honrar sua esposa.

Um homem que levanta a mão para a própria esposa não é um homem. Um marido que bate na mãe de seus filhos, que agride a sua companheira de vida, é um covarde. Bate em alguém fisicamente mais frágil. E que foi socializada para não reagir. Que foi “doutrinada” para perdoar tudo “por amor”.

Mas quem ama não machuca. Quem machuca quer dominar. Dominar não é amar. A violência é usada para submeter o outro. É o único propósito dela. Uma pessoa que comete violência tenta submeter a sua vontade sobre a do outro. Isso não é amor. É dominação.

Por que não se recomenda a homens traídos se ajoelharem e pedirem a Deus para a esposa parar de trair? Por que na fraqueza da esposa o homem não é aconselhado a orar para que ela deixe de se comportar assim? Porque não é assim que funciona. E ele sabe.

Por muito tempo, Sara Mariano foi ajoelhar e rezar achando que o problema era dela. Que era dela a responsabilidade de fazer o marido ser um homem decente.

Mas, graças a Deus, as mulheres estão percebendo o equívoco desse pensamento. E estão encontrando meios de sair dessas violências.

Sara se via obrigada a conviver porque queria continuar cantando na igreja. Mas Deus queria que ela fosse feliz! Porque só estando feliz ela poderia levar felicidade para outras pessoas, como fazia com as suas músicas. Ela precisava estar confiante na vida para ajudar a fortalecer a confiança das pessoas que lhe ouviam.

Ela tomou coragem e reuniu forças para enfrentar a separação. Ela queria sair daquela situação em que vivia. Ela não queria estar com um agressor. Ela não queria que sua filha convivesse com aquelas violências. Falo de Sara mas poderia estar falando de inúmeras outras mulheres que vivem a mesmíssima situação.

Traição é uma atitude condenável e que, sem dúvidas, machuca muito. Mas, diferente do que tentam propagar, o homem não mata porque sua honra é atingida com a traição. Por mais que doa, não justifica matar ninguém.

O homem mata porque percebe que a mulher tem autonomia sobre sua vida.

Não é pela traição. É porque ela quer ser dona da própria vida.

Não é defesa da honra. É defesa do seu domínio. Do interesse de ser dono da mulher e poder fazer com ela o que bem entender.

Se ela vai embora, ela desafia o seu controle. E perde a serventia para ele. Então pode ser eliminada. É por isso que ele a aniquila.

Ele mata porque ela decidiu deixá-lo. Ele mata porque ela decidiu outro rumo na vida dela.

Porque ela ousou se apropriar da própria vida.

A morte e a violência são um recado não apenas para Sara, mas para todas nós. Um lembrete de que a nossa vida está em risco toda vez que dizemos ‘não’. Mas nós vamos seguir dizendo ‘não’ ao que não desejamos. Nós vamos seguir decidindo nosso próprio rumo. Nós vamos continuar nos fortalecendo e deixando pra trás o que não nos faz bem. E a Justiça para Sara será a Justiça para sua filha, para sua mãe, para sua irmã e para todas nós mulheres.

Foto do autor
AUTOR

Jéssica Senra

AUTOR

Jéssica Senra

Participe do canal
no Whatsapp e receba notícias em primeira mão!

Acesse a comunidade
Acesse nossa comunidade do whatsapp, clique abaixo!

Tags:

Mais em O Olhar Dela