Vi no Fantástico que, nas últimas horas de vida, o médico baiano Perseu Ribeiro falou sobre o futuro. Relembrando o passado com amigos da especialização, compartilhou também a preocupação com o trabalho e a criação dos filhos de 3 e 11 anos de idade. Planejava modernizar a clínica médica da família em Ipiaú, no sudoeste baiano. Estava no Rio justamente para participar de um congresso internacional em sua área. Mas a violência não deixou que nenhum dos planos fosse concretizado.
Em 33 segundos, quatro completos estranhos interromperam os 33 anos de vida de Perseu, celebrados um dia antes. Interromperam o sonho de ampliar a clínica que um dia foi de seu pai, e o desejo de ver crescerem os dois filhos ao lado da amada esposa. Interromperam a felicidade de uma família e o cuidado dos pacientes do médico.
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E Perseu era um cara responsável. Era sua primeira vez na capital carioca. A esposa, preocupada com a violência, tinha lhe feito prometer que não ficaria circulando pela cidade e foi monitorando cada passo desde o pouso do avião às quatro horas da tarde. Faltando um minuto para as oito, Perseu avisou à esposa que iria sair do hotel onde estava hospedado – escolhido propositalmente no mesmo local do evento em que participaria no dia seguinte. Cumprindo o que prometera, não foi muito longe: apenas atravessou a rua com o amigo Daniel e se sentou num quiosque em frente.
Perseu abraçou o amigo e deixou o hotel sem imaginar que seria a última vez, que seria vítima de um ataque tão violento. Afinal de contas, não havia absolutamente nenhum motivo para imaginar isso.
Quando a esposa de Perseu foi dormir, ele ainda não havia retornado ao hotel. Ela lhe mandou um boa noite e disse-lhe um te amo sem saber que seria a última vez. Ele lhe respondeu com uma foto sorridente ao lado dos amigos. Nenhum dos dois podia imaginar que esta selfie ilustraria uma tragédia e rodaria o país no dia seguinte.
Quando passou de meia noite e meia, os amigos se deram conta do avançar da noite. À 0h39, um quinto amigo que também estava com os médicos pagou a conta e foi embora. Impossível não pensar que talvez uma saideira a mais pudesse ter custado a vida dele também.
Meia noite e 46 minutos, uma mulher para rapidamente na mesa e cumprimenta os amigos. Se ela resolve sentar-se, tirar uma foto ou se demora um pouco mais na conversa, também poderia estar entre as vítimas....
E o único sobrevivente do ataque? O que deve passar em sua cabeça e em seu coração depois de tudo o que viveu e presenciou? Daniel levou 14 dos 33 tiros disparados. A mãe dele falou em milagre. E talvez só isso mesmo explique.
Um amigo meu acredita que cada um tem seu dia certo. E que se não for o dia da pessoa, ela não vai.
Não adianta muito pensar sobre isso porque creio que jamais saberemos. Vai da fé de cada um. Para quem fica, há uma angustiante vontade de voltar no tempo e alertar para que eles não saíssem do hotel. Os “e se” maltratam porque trazem uma inútil esperança de que talvez as coisas pudessem ser diferentes. Infelizmente, não podem. Viver é criar resistência e resiliência diante das despedidas.
Salvo quando se enfrenta uma doença, dificilmente a gente acorda pensando que aquele será o nosso último dia. No atropelo da rotina, damos a vida como certa e planejamos como se houvesse infinitos amanhãs. Mas, um belo dia, naquele em que você está cheio de planos e animado para reencontrar velhos amigos, num quiosque em frente ao seu hotel para não vacilar numa cidade violenta, o amanhã não irá chegar. E tudo aquilo que foi planejado? Tudo aquilo que ainda não foi realizado? Tudo aquilo que não foi dito na correria da viagem, do Congresso, dos compromissos?
Nós também morremos um pouco quando uma pessoa amada se vai. Morre com ela parte de nossas memórias, morrem as conversas não ditas, morre o futuro que se imaginava eterno.
Não pensamos sobre a morte, não programamos nossas despedidas, deixamos para depois como se fôssemos durar para sempre.
Todos os dias morremos um pouco. Todos os dias deixamos o tempo escapar entre os dedos, deixamos escapar oportunidades, acreditando que teremos mais, enquanto a morte pode estar à nossa espreita.
Mas pensar diariamente na morte nos traria mais vida? Poderia nos fazer viver de maneira diferente pensar que hoje pode ser nosso último dia? Quantas coisas deixamos para amanhã, para depois? Quantas mágoas guardamos para que algum dia o tempo ajude a suportá-las?
Se você morresse hoje, estaria satisfeito com a vida que levou? Com a história que construiu? O que mais te falta fazer? E o que falta para que você comece a fazer?
Vivemos como se fôssemos eternos, mas de tempos em tempos, a morte nos lembra que temos um encontro marcado. Não diz o dia nem a hora, mas nos recorda da nossa finitude, nos recorda que a vida é frágil.
Jéssica Senra
Jéssica Senra
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