Entrar numa sala de teatro para ver um espetáculo pode produzir efeitos fascinantes e ao mesmo tempo perturbadores. Essa relação tem uma correspondência direta com cada espectador, em diferentes níveis, a depender de suas experiências de vida e visões de mundo. É tudo muito óbvio o que digo aqui, mas essa peça que assisti este mês de setembro, no Teatro ISBA, em Salvador, me fez voltar a pensar nessas questões de recepção do público. E não é pelo fato dessa minha presença mais afinada e assídua com as artes cênicas que me vejo isento da capacidade de me espantar, me emocionar e me surpreender.
Faço aqui essa introdução para falar da versão brasileira do espetáculo “Tom na Fazenda”, criada em 2017, mas que só agora tive a oportunidade de ver. Produzida, traduzida e protagonizada pelo ator Armando Babaioff, artista com mais de 25 anos de carreira, que transita entre trabalhos na tv, no teatro e no cinema, a montagem acumula diversos prêmios nacionais e internacionais, como o Shell, o APTR, o Cesgranrio, Cenym, Associação de Críticos de Teatro de Québec, entre outros. Com direção de Rodrigo Portella e texto do dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard, a obra se intitula como um suspense.
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A história de um jovem designer publicitário que viaja para uma zona rural para o velório de seu companheiro, morto num acidente de moto, é o mote para uma série de tiranias e revelações, como, por exemplo, a própria sogra negar o conhecimento de que o filho fosse homossexual ou mesmo que tivesse um namorado.
A mãe, por essa ocasião, interpretada pela atriz Soraya Ravenle, tem mais um filho, personagem de Gustavo Rodrigues, que desempenha um papel perverso e maquiavélico na vida do protagonista, Tom, vivido magistralmente por Babaioff. E a participação especial de Camila Nhary, cuja personagem é crucial neste enredo.
Para o autor canadense, a montagem brasileira é a mais violenta que já assistiu. Não vi outras, mas confesso que é um soco no estômago, que nos deixa atônitos, diante da forma nua e crua como escancara essa natureza perversa da tortura física, psicológica e homofóbica, reflexo de uma sociedade brasileira também violenta e conservadora. Tudo isso se expressa no palco pela simbologia dos duelos, das relações masoquistas, do cenário imerso num lamaçal e por uma iluminação sombria, que nos instala nesse ambiente vertiginoso e que nos faz pensar em nossas ambiguidades e em nossas certezas. Uma forma de interficção e metaficção, de cruzamento de gêneros e estruturas de ficção, em que realismo e absurdo vão tecendo uma jornada de esvaziamento de humanidades.
A encenação de Rodrigo Portella desnuda a cena, cria um eixo instável e imprevisível, um espaço polifônico em que o domínio e a contracena possuem códigos e dinâmicas abertas. Nesse clima de trapézio circense, o elenco é desafiado a manter a organicidade das cenas coreografadas e o controle de ações que os deslocam completamente da zona de conforto. Não há pudores possíveis nesse ambiente de interpretação. Há entrega e visceralidade. Sinestesia em alto grau para os atores e para o público. A metáfora de que estamos atolados na lama das nossas contradições, das nossas mazelas sociais, nos afeta num lugar de revolta, perplexidade e da nossa condição de responsáveis e impotentes. Tudo isso tendo como tônica a homofobia.
O texto de Bouchard é uma trama de múltiplos planos narrativos. Eu poderia destacar, no mínimo, quatro. O que me faz lembrar da forma como Nelson Rodrigues construía sua dramaturgia, criando atmosferas cênicas distintas. Uma dinâmica que faz escola em diversas encenações e que, em “Tom na Fazenda”, se apresenta na presença oculta da personagem morta, nos planos alucinógenos das lutas, na metaficção das estruturas dramatúrgicas e nesse jogo entre verossímil e inverossímil da peça. Bouchard explora com genialidade o trivial e o cotidiano da vida.
“Tom na Fazenda” vem circulando por importantes festivais internacionais do Brasil e do mundo, além der estar em turnê nacional e internacional. A peça traduzida por Armando Babaioff foi publicada pela Editora Cobogó no mesmo ano de estreia da montagem brasileira (Coleção Dramaturgia, 2017) e pode ser adquirida no site da editora Tom na fazenda - Editora Cobogó.A peça também já foi adaptada para o cinema pelo diretor canadense Xavier Dolan. Mais informações sobre a montagem brasileira na página oficial no facebook.
Ficha Técnica:
- Texto: Michel Marc Bouchard
- Tradução: Armando Babaioff
- Direção: Rodrigo Portella
- Elenco: Armando Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary
- Cenografia: Aurora dos Campos
- Iluminação: Tomás Ribas
- Figurino: Bruno Perlatto
- Direção Musical: Marcello H.
- Coreografia: Toni Rodrigues
- Comunicação e Prog. Visual: Victor Novaes
- Produção Executiva: Cláudia Barbot e Júlia Tavares
- Produção local: Flávio Marques
- Financeiro e Administrativo: Letícia Napole
- Direção de Produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela
- Idealização: Armando Babaioff
Arlon Souza
Arlon Souza
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