Quando o cantor, compositor e dramaturgo Chico Buarque escreveu a sua primeira peça de teatro, em 1967, aos 23 anos de idade, ele tinha como ideia principal abordar o seu desconforto com as tramas do show business e com a indústria do Entretenimento, na perspectiva da fabricação em série de novos ídolos, retirando deles a própria alma. “Roda Viva” é fruto dessa insatisfação precoce do autor com essa roda viva de ascensão, declínio e descarte dessas celebridades. Uma comédia musical, crítica, ácida e irônica, permeada pelas canções de Chico e por diversos outros ritmos. Inclusive, a canção-título, que, embora não tivesse na percepção do artista um caráter político no início, se tornou um dos hinos de protesto contra a Ditadura Militar no Brasil.
Sua primeira montagem no país, em 1968 - ano do tenebroso AI-5 - foi pelas mãos do genial e transgressor Zé Celso Martinez, que nos deixou de maneira trágica no dia 6 de julho deste ano e que é homenageado na encenação de Hebe Alves. Desde a direção de estreia de Zé Celso, a peça foi alvo dos censores durante a Ditadura Militar e vítima do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que invadiu com um grupo de vinte pessoas o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, agrediu artistas e destruiu o cenário. Em setembro do mesmo ano a peça estreou no Rio Grande do Sul, a violência se repetiu e o espetáculo foi proibido pela censura, considerado como "degradante" e "subversivo". Segundo o censor Mario F. Russomano, Chico Buarque "criou uma peça que não respeita a formação moral do espectador, ferindo de modo contundente todos os princípios de ensinamento de moral e de religião herdados de nossos antepassados".
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Moralismos e retrocessos à parte, “Roda Viva” é o retrato icônico da contemporaneidade, a promessa de fama instantânea que seduz o protagonista, Benedito Silva, para se tornar ídolo pop nacional e até internacional, continua seduzindo aspirantes em suas diversas formas.
A figura do empresário que ditava todo o comportamento, visual, discurso e todos os passos do artista, como uma marionete, na década de 1960, hoje se transmuta de muitas maneiras através dos mesmos empresários e também dos coaches, mentores e toda uma gama de tutores do algoritmo e da fama imediata, do engajamento e da viralização.
A adaptação baiana da diretora Hebe Alves não perde a essência da peça, porém, imprime nela a sua assinatura, ao atualizar este enredo com o universo das redes sociais, da sociedade do même, das famosas ondas de trends que assolam o Brasil e o mundo, esvaziando subjetividades e tornando tudo efêmero e descartável. O mundo dos “digital influencers”, dos dançarinos “tik tokers”, dos tutoriais de “look”, entre outras celebridades que surgem da noite pro dia ditando comportamentos e fórmulas de sucesso a curto prazo. Como bem diz o texto, a busca pelo “Sou visto, logo existo”.
A construção de um indivíduo que agrade, entre aspas, a Deus e o Diabo. E nisso a obra é muito sagaz nessa manobra, sem maniqueísmos, entre as personagens do Anjo da Guarda e do Capeta, estabelecendo elas um elo de complementaridade, onde tudo está condicionado a chantagens e conchavos. Se na boca do Anjo da Guarda de Roda Viva, “a propaganda é alma do negócio”, hoje, o desafio é descobrir como engajar e manter milhões de seguidores.
Intrigas, polêmicas, manipulação, demagogia... Qualquer semelhança com os dias de hoje, é a constatação de que a Roda Viva da década de 1967 permanece atemporal. E Hebe multiplica essas personagens em cena, instala seus duplos, como um viral que ocupa outros corpos. Nesse caso, revezando entre os atores.
Há ainda uma homenagem à também saudosa cantora e compositora Rita Lee, que é um diálogo muito coeso com a montagem de Hebe, na forma como compõe a dramaturgia. “Quando Rita Lee morreu, eu estava
ensaiando. Ela é uma artista que contraria essa lógica mercadológica. Que criou uma carreira que realmente marcou a Música Popular Brasileira. Rita Lee, autoral, irreverente, que rompeu com muitos dos padrões conservadores... Uma mulher, roqueira e tal... Que é uma mulher que não é produzida pela indústria fonográfica brasileira”, relembra a diretora.
O espetáculo de pré-formatura do Bacharelado em Interpretação Teatral da UFBA ganha ainda outro paralelo, na direção musical de Luciano Salvador Bahia, ao passear por ritmos baianos, indo do samba reggae ao pagode. A trupe de atores que conta essa história forma, na maior parte do tempo, um grande coro. Um trabalho coreográfico em que Daniela Botero se inspira em danças indígenas e populares, engrenagens de fábrica e anatomia de animais. Já o figurino de Agamenon de Abreu tem uma atmosfera da Tropicália e de um universo carnavalesco. Enfim, uma adaptação com tempero baiano na medida.
Espetáculo “Roda Viva”
- Data e horário: até dia 16 de julho – quinta a domingo, 19h
- Local: Teatro Martim Gonçalves - Av. Araújo Pinho, 292 - Canela, Salvador - BA
- Ingressos Gratuitos – Retirar na bilheteria com 1 hora de antecedência
FICHA TÉCNICA:
- Direção: Hebe Alves
- Equipe de professoras: Elisa Mendes e Daniela Botero
- Texto: Chico Buarque
- Adaptação do texto: Cleise Mendes Cenário: Zuarte Junior
- Figurino e maquiagem: Agamenon de Abreu
- Assistência de figurino: Lucas Oliveira e Tiago Soas
- Costura: Marinalva Nascimento
- Iluminação: Victor Hugo Sá Operação de luz: Caio Barbosa
- Direção Musical: Luciano Salvador Bahia
- Assistência de Direção Musical: Marcos Lopes
- Operação de som: André Oliveira Assessoria de Imprensa e Arte gráfica: Arroyo
- Comunicação: Marina Torres
- Assistência de comunicação: Nina Andrade
- Direção de Produção: Clarissa Gonçalves Produções
- Assistência de produção: Lívia Maria, Kaila Janaina e Belatriz Costa
- Fotos: Diney Araújo e Bia Galvão
- Produção de fotografia: Clarissa Gonçalves, Tiago Soas e Agamenon Abreu
Redação iBahia
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