Habituado a reunir uma série de conceitos, mídias e discursos em suas montagens, desde 1972, quando começou a sua carreira, o diretor de teatro Márcio Meirelles não para de criar interlocuções com as mais variadas artes, contextos sociais e políticos. Tendo a Arquitetura e as Belas Artes na origem de sua formação, o artista ainda costuma assinar com frequência cenografia, iluminação, figurino e outros aparatos da cena.
Essa prática de enveredar pelos distintos campos da engenharia cênica tem grande ligação com o extinto Avelãz y Avestruz (1976-1989), grupo do qual foi diretor e desenvolveu um trabalho de pesquisa calçado na experimentação estética.
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Nessa trajetória, é fundamental falar dos mais de 20 anos de produção com o Bando de Teatro Olodum, da revitalização e reforma do Teatro Vila Velha na década de 1990 e do percurso em outras companhias residentes do Vila, como a Companhia Teatro dos Novos, que fundou o TVV em 1964. Essa sucessão de experiências coletivas, colaborativas, autônomas e cumulativas escoa de muitas maneiras em seus espetáculos.
Quem observa com mais atenção o teatro de Márcio Meirelles, logo percebe as suas marcas de direção, identifica o seu processo retroalimentar, vê as correspondências de exploração e ocupação do espaço, do tempo, da pulsação, da inserção do audiovisual e outros recursos narrativos.
A atmosfera que se instaura a partir da musicalidade percussiva e mesmo da sonoridade de base eletrônica, geralmente executada pelos próprios intérpretes, configura um ambiente em que o público se dilui na obra, se aproximando muito dos conceitos de instalação das artes visuais.
A luz entra em cena de forma muito plástica e funcional. E pensando na formação inicial do artista, é possível sentir a influência marcante da Arquitetura e das Belas Artes em seus trabalhos. Meirelles constrói, a cada montagem, os pilares de sua própria “gramática”, da sua linguagem e da sua forma ímpar de se comunicar com o mundo.
Por meio da “universidade LIVRE do Teatro Vila Velha”, programa de formação em artes cênicas criado em fevereiro de 2013, que agora completa 10 anos, o encenador continua incorporando, potencializando e fruindo todas essas vivências por meio de experimentos, leituras dramáticas, espetáculos e investigação de diversos autores e dramaturgias.
Atualmente, com a turma 2023.1 da LIVRE, segue em processo de investigação para a construção do experimento cênico “Identidades Afro-Brasileiras”, no qual vem discutindo e refletindo sobre o tema a partir de percepções e entedimentos sobre alteridade, empatia, tolerância, afeto, respeito, singularidade, entre outros conceitos possíveis de abordagem e debate.
Já nessa etapa bem inicial, nota-se nessa composição do texto uma cíclica que converge nas representações do que entendemos por alteridade e empatia, o que talvez sejam a essência para chave dessa descoberta identitária. Assimilar com mais proximidade esse lugar do outro. Já sinalizando o grupo que a parte não substitui o todo nem o universal as singularidades, dentro desse fluxo histórico e colonial de apagamento de tantas culturas e identidades.
Nesse diálogo, o encenador Marcio Meirelles insere a citação da obra “O Eu Soberano: ensaio sobre as derivas identitárias”, da historiadora e psicanalista francesa Élisabeth Roudinesco, que propõe pensar sobre essas relações e formas de emancipação identitária que, muitas vezes, tem resultado em isolamentos de suas lutas. Assim como o diretor traz referências do cinema e do desfecho da peça e do filme “Ó paí Ó ”, de sua autoria, em que um policial mata duas crianças negras e pobres, moradoras do Pelourinho; denunciando uma estrutura desigual e sistêmica, onde oprimidos reproduzem a prática do opressor, apagando subjetividades.
Coletivas, colaborativas, randômicas e cumulativas, as primeiras experiências dessa escrita reivindicam autonomia, liberdade, representações, protagonismo, lideranças, feminismo negro, reparação, consciência étnico-racial... Nesse contexto, a metáfora e a simbologia do mar como percurso de uma travessia que exige equilíbrio, direção, coerência, articulação, luta e aceitação.
Nesse caminho, a orientação de um a leitura elaborada, porém ainda crua, para que a essência dessa palavra não se distorça: “Nós não lemos o texto, nós falamos o texto para alguém, elaboramos o texto para que ele saia como ele realmente é... Levamos uma mensagem, um pensamento para alguém”, enfatiza Marcio Meirelles.
O sentido de pertencimento está no radar desse processo. “Os outros somos também nós”, observa Meirelles. Nesse lugar, uma faceta da identidade é pensar como você se identifica no universo. Buscar o apoio de quem realmente te entenda e aceite o seu eu como você é.
Em meio às leituras, frases como: “Na memória, trago ancestralidade, mas também força”; “Como confiar nessa identidade que não me cabe”; Identidade é como nos vemos, como nos sentimos, no que está impresso na minha pele, na minha carne”; “Me adequar às expectativas não é identidade”...
Na roda de leitura, o texto se redimensiona, encontra conexões, entrelaces... Meirelles provoca o grupo nessa costura dramatúrgica e a pensar como essa hierarquia se constrói, formando o diálogo, a poética. o discurso. Os encontros da Universidade LIVRE de Teatro Vila Velha estão acontecendo às terças, quartas e quintas, das 18h às 21h.
Mais informações no instagram do Vila: @teatrovilavelha. Assista aqui a um dos espetáculos de maior sucesso da Cia. Teatro dos Novos: “A Tempestade” (2020). Texto: William Shakespeare. Encenação: Márcio Meirelles.
Arlon Souza
Arlon Souza
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