Fervorosa devota de Santo Antônio, ekede de Ogum em terreiro de nação Ketu, Dona Mariinha me incumbiu de uma missão “estranha” quando soube que eu havia sido escalado pela Rede Bahia de Televisão para cobrir a canonização de Santa Dulce dos Pobres, a primeira santa brasileira, em outubro de 2019.
Assim que eu desembarcasse na Cidade do Vaticano, na Itália, deveria olhar para o chão e, intuitivamente, escolher uma pedrinha, a primeira que avistasse, e trazê-la de lembrança para ela. Qualquer uma, de qualquer tamanho e formato, desde que fosse uma “pedra do Vaticano”. Recomendou-me a não esquecer daquela missão sagrada.
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Dona Mariinha tinha, à época, 85 anos. Aposentada, mãe de sete filhos, criou a prole sozinha num tempo em que “lavar roupa para fora” era, talvez, a principal atividade a qual se destinavam mulheres pretas e pobres da periferia de Salvador. Cuidou da família sozinha, “com Deus à frente” e com ”Santo Antônio e Ogum no cangote”, como dizia.
Conheci aquela senhora franzina, com um metro e meio de altura e olhos penetrantes, anos antes de receber a tal missão sagrada. Era uma terça-feira. Sabendo da minha admiração pelo santo português, o saudoso Frei Ronaldo me convidou para ler uma passagem bíblica numa festiva noite de Trezena na Igreja de Santo Antônio Além do Carmo.
A partir dali, e nos anos seguintes, nos vimos muitas vezes, Mariinha e eu, ela sempre a destacar o meu semblante de “legítimo filho de Oxóssi e Oxum”. De encontro em encontro, estreitamos os laços. Falávamos da nossa fé e do amor que nutríamos por santos e orixás. E assim, nesse contexto, ela me fez o tal pedido acerca da pedra.
Fé em Antônio e a pedra
Chegou, então, a data da viagem. Mergulhei na produção de reportagens e entradas ao vivo para os telejornais da Rede Bahia e da TV Globo. Foram dias dedicados inteiramente à canonização do Anjo Bom da Bahia, o que envolvia viagens de avião, trem, ônibus e metrô, um sobe e desce sem fim em busca das melhores entrevistas e imagens.
Em 13 de outubro, a data solene da festa, lá estávamos - German Maldonado, o cinegrafista, e eu, metidos no meio da multidão que lotava a Via della Conciliazione, principal acesso à Piazza San Pietro. Vimos pender de uma das janelas do Vaticano uma flâmula com a imagem de Irmã Dulce, oficialmente reconhecida santa a partir daquele instante; vimos devotos brasileiros, emocionados, acenando para o Papa Francisco que, tão logo a cerimônia foi encerrada, desfilou perto de nós a bordo do Papa Móvel.
Através dos nossos relatos ao vivo, em transmissão nacional, o Brasil testemunhou numa manhã de domingo uma freira baiana ganhar os altares católicos de todo o mundo. Terminado o trabalho, tão felizes quanto exaustos, chamamos um táxi que nos levaria ao Fiumicino, o aeroporto Internacional de Roma, de onde pegaríamos o avião de volta a Salvador. Somente ao entrar no carro, como se tivesse recebido um sinal de Mariinha, me lembrei da “missão sagrada”. Saí loucamente à procura da pedra.
Sem nada entender, e talvez me julgando louco, todos em volta me viram cavucar o chão do Vaticano. Quando não havia mais tempo, pressionado a voltar ao táxi, consegui arrancar uma pedrinha de entre os paralelepípedos. Uma pedrinha suja de terra. Meti-a na mala e segui, enfim, para o aeroporto. Em Salvador, semanas após o retorno, me preparava para ir ao encontro de Mariinha e a ela entregar a sua tão desejada lembrança.
Não deu tempo. Fui informado por sua neta, Alice, que a minha amiga havia partido dias antes. Morreu sem nunca ter sabido que eu havia cumprido a promessa. Sinto ter demorado para visitá-la. Sinto não ter dado a pedra e um abraço forte em Mariinha. Sinto, apenas. Hoje, cinco anos depois, remexendo objetos em casa, revi a “pedra sagrada”. Já não está coberta de terra. Brilha como há de brilhar a sua verdadeira dona, aquela que, creio eu, agora caminha ao lado de Santo Antônio e de Ogum.
Ricardo Ishmael
Ricardo Ishmael
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