Há 117 quilômetros de Salvador, em Cachoeira, o mês de agosto é marcado por uma das festas mais importantes da Bahia: a Irmandade da Boa Morte e Glória. A marcha de dezenas de mulheres tomam as ruas da cidade com a missão de reforçar a importância de uma história que começou, ao menos, 200 anos atrás.
Considerado Patrimônio Imaterial da Bahia desde 2010, a festa sempre acontece no período de 13 a 17 de agosto, mês dedicado à Nossa Senhora. A confraria religiosa afro-católica, na sua origem, foi responsável pela alforria de inúmeros escravos e é considerado um dos primeiros movimentos feministas, abolicionistas e afro-baiano.
"Admitir uma devoção, admitir um santo pra devoção, é justamente o resultado de todo o processo de resistência da mulher negra na sociedade branca, escravagista e patriarcal", destaca Valmir Pereira, administrador do Centro Cultural da Boa Morte e que trabalha para a Irmandade há mais de 28 anos.
Na tradição afro-católica, o título de Nossa Senhora da Glória refere-se à passagem da Virgem Maria, da vida terrena para a vida celestial. O título de Nossa Senhora da Boa Morte é usado como um clamor à santa, para uma boa passagem na hora da morrer. No século passado, os negros escravizados sempre faziam o pedido pela interseção de Maria para morrerem bem, sem martírio, junto a ela.
Quando tudo começou
Os primeiros indícios da manifestação da Irmandade datam de um intervalo entre 1810 e 1840, ainda em Salvador. O grupo que atuava na capital baiana, formado por escravas vindas da África, foi extinto devido a perseguições.
Acredita-se que parte dessas mulheres partiram de navio para o recôncavo e se instalaram em Cachoeira. O produtor cultural ressalta, no entanto, que o movimento na região começou por iniciativa das mulheres da cidade.
"[A Irmandade] Estar em Cachoeira não foi bem uma imigração. Porque as [mulheres] que estavam em Salvador, fazendo o movimento, boa parte delas foram expulsas, principalmente na revolta dos Malês. Mas a Irmandade de Cachoeira vai nascer por iniciativa das mulheres daqui, das mulheres locais. Porque lá [em Salvador], vai entrar em extinção por volta de 1830, 1840, e aqui vai se formar uma Irmandade a partir de 1860", esclarece.
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Em Cachoeira, as irmãs se instalaram na casa de n° 41, na Rua Ana Nery, onde começou o trabalho social.
Elas trabalharam como comerciantes para comprar a liberdade dos negros. Produziam iguarias, cocadas, doces, acarajés, para serem vendidos e ajudar a manter a festa da Boa Morte e a própria casa, além de ajudar na sobrevivência do grupo.
Para conseguir cultuar uma santa católica, sem deixar de lado a ancestralidade, as irmãs precisaram lutar em busca dos seus direitos. Apenas em 1970 o reconhecimento começou a chegar. Isso porque a imagem da Irmandade foi exposta para fora do país, por meio de fotografias. Já entre 1980 e 1997, o grupo ganhou diversas doações de imóveis, que são utilizadas como sede do grupo na cidade, e a Capela da Irmandade da Boa Morte, na Rua 13 de Maio.
Atualmente, para ser uma das irmãs, a candidata precisa ser negra e ter a partir de 35 anos. Para entrar para o grupo, é feito a candidatura e depois a avaliação por uma equipe. Caso seja aprovada, ela passa por alguns estágios até assumir a função e mantendo viva a cultura da Irmandade.
Tradição resiste ao tempo
Hoje o grupo mantém a missão social, mas dedicada principalmente a educação. Resistindo ao tempo e às dificuldades, elas continuam organizando os festejos anuais para a santa.
Camilla Souza (@lentesdecamilla) , cachoeirana e fotógrafa — são dela as imagens que ilustram essa matéria —, tem acompanhado isso de perto. Desde 2013 ela registra a festa, e destaca a dimensão que o movimento tem ganho. Todos os anos os festejos da Irmandade da Boa Morte atraem pessoas de diversos lugares do Brasil e do mundo.
"As mudanças são bem perceptíveis. As pessoas mais velhas de Cachoeira falam sobre como era a festa antes da Irmandade ter uma sede própria, na rua 13 de maio. A festa era muito mais tímida, não tinha muito a participação das pessoas da cidade, e quando essa festa é percebida por pesquisadores, antropólogos de outros lugares, que vem pra cá mostrar a importância dessa festa, dessa Irmandade, ela ganha uma nova percepção", conta.
Apesar de ter começado a acompanhar profissionalmente a festa há 10 anos, como cachoeirana ela sempre participou das celebrações do período.
" Minha mãe costumava me levar desde a procissão, as missas, todos os ritos dos festejos da Boa Morte. [...] Desde pequena me marcou muito, me tocou muito essa força, o simbolismo dessas mulheres, essas vestes, a forma como elas desfilam na rua, seus adereços, a imponência que elas mostram ao longo de todos esses anos", disse ao iBahia.
A procissão e as missas citadas pela fotógrafa fazem parte da programação da tradição. Com os símbolos da Boa Morte (cajado, tocha e brasão), as irmãs comemoram o dia de Nossa Senhora da Glória por cinco dias, reunindo cultura e religião, em manifestações de fé e resistência pelas ruas da cidade. Uma tradição que já faz parte da história da Bahia e do mundo.
"É como se estivesse vendo a história viva se movimentar", conclui Camilla.
Programação
● 13 de agosto
18h30 - Translado do corpo de Nossa Senhora da Boa Morte da Capela de Nossa Senhora D'ajuda em procissão pelas ruas da cidade.
● 14 de agosto
19h - Missa de corpo presente de Nossa Senhora na Capela de Nossa Senhora da Boa Morte.
21h - Procissão do Enterro de Nossa Senhora da Boa Morte pelas principais ruas de Cachoeira.
● 15 de agosto
5h - Alvorada com fogos de artifícios
10h - Missa solene da assunção de Nossa Senhora da Igreja matriz de Nossa Senhora do Rosário.
11h - Procissão festiva em homenagem à Nossa Senhora da Glória e posse da comissão organizadora do evento em 2017.
12h - Valsa e samba de roda no largo D'ajuda
13h - Almoço das irmãs, convidados e pessoas da comunidade na sede da irmandade.
16h - Samba de roda no largo D'ajuda
● 16 de agosto
18h - Prato conhecido como cozido (alimento feito com mistura de verduras e carnes, acompanhado de um pirão) será servido, seguido de samba de roda no Largo D'ajuda.
● 17 de agosto
18h - Caruru seguido de samba de roda e encerramento da festa Edição 2023
Nathália Amorim
Nathália Amorim
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