Perto de fazer 100 anos, o menino Jorge Amado não tem mais casa. A do rapaz, em Ilhéus, se mantém como pode. A do escritor famoso, em Salvador, também. Mas a pequena residência de uma porta e duas janelas, que abrigou o garoto no lugar onde ele nasceu, sumiu. Em Ferradas, distrito da zona rural de Itabuna, no Sul da Bahia, só restou a placa anunciando um museu, a grande novidade que nunca chegou. A casa agora sem teto, sem nada, existe apenas nas lembranças de parte dos quase cinco mil moradores de Ferradas, que esperavam ver a residência transformada no Museu Jorge Amado. A promessa política de criar um espaço de homenagem ao filho mais ilustre, em sua terra natal, foi feita pela primeira vez em 1982. Mas, nunca passou do estágio das palavras.
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Prefeitura esconde o local que abrigou a morada do romancista |
“Quase 30 anos depois, não fizeram nada. O imóvel foi se deteriorando. Primeiro, foi o telhado. Os cupins comeram quase tudo. O resto, os vândalos e o tempo deram conta. Só ficaram mato e pés de mamona”, lamenta o advogado e escritor Gustavo Veloso, autor de Ferradas, Um Capítulo na História do Brasil, no qual narra a trajetória do antigo vilarejo que pariu o maior romancista baiano e um dos mais representativos nomes da literatura brasileira.
História - Ferradense como Jorge, Veloso reside ao lado da casa onde o seu conterrâneo morou, na Rua Frei Ludovico Livorne, 213, uma via de menos de um quilômetro, com cara de parada no tempo. Do segundo andar do sobrado onde se dedica a remontar a história local, o escritor aponta para o matagal que engoliu parte da memória do menino antes de virar autor traduzido em 49 idiomas e 55 países.
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Casa sem teto, sem nada: no lugar de paredes, apenas o matagal |
Baseado em documentos, relatos em vídeo do próprio escritor e narrativas orais de antigos moradores, Veloso conta: “Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, na Fazenda Auricídia. Mas, em 1914, a cheia do Rio Cachoeira, que banha a região, obrigou os pais dele (João Amado e Eulália Leal) a saírem de lá. Primeiro, eles foram para o Lazareto da vila, que ficava próximo à fazenda e onde ficavam os ‘bexigosos’ (contaminados pela varíola)”.Segundo Veloso, ao saber das dificuldades da família Amado, o “coronel” Aristides Vaz Sodré, dono de fazendas de cacau na região Sul da Bahia, oferece ajuda. “O patriarca dos Vaz Sodré era amigo de longa data do pai de Jorge, tratava-o como parente. Ele enviou um bilhete e disse que a casa que tinha em Ferradas estava à disposição”, relata.A casa abrigou Jorge e os pais, ainda de acordo com Veloso, durante mais de dois meses, antes do nascimento dos três irmãos do escritor: Jofre (1915), Joelson (1920) e James (1922). Quando as águas do Cachoeira baixaram, a família se despediu de Ferradas rumo a Ilhéus, à época, a maior cidade do Sul baiano. “Deixaram cair o que tinha restado da vida dele em Ferradas. A sede da Fazenda Auricídia não existe faz tempo”, queixa-se, entre garrafas de batida de gengibre e enlatados, o comerciante José Farias, 65 anos, dono da mais visitada “venda” do distrito.Esquecimento Enquanto o romancista colhia, pouco a pouco, os louros pelo estouro de romances como Gabriela, Terras do Sem Fim, Jubiabá e Capitães da Areia, Ferradas ia perdendo a conexão com o filho. Mas, em 1993, ele reaparece em Ferradas, trazido pela nova promessa do então prefeito de Itabuna, Fernando Gomes, de transformar o lugar no Museu Jorge Amado. Com moradores, tira fotografias em frente à casa e participa da inauguração de um busto em sua homenagem.A ideia de um cadinho para o escritor baiano no distrito foi acalentada pelo amigo e poeta Telmo Padilha, assim como Jorge, nascido em Ferradas. “Então diretor do Projeto de Atividades Culturais do Cacau (Pacce), ele lutou muito para ver o museu em operação”, conta Veloso. A inércia política não deixou. Padilha morreu em 1997 de acidente de carro, sem ver o sonho realizado.Hoje, uma placa antiga tapa a visão do que ruiu, informando sobre as instalações do museu. Na praça em frente, uma outra placa, de 1998, informa, quase em tom de ironia: “Homenagem e reconhecimento do povo de Itabuna ao mérito do mais ilustre e universal dos seus filho”.
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Apesar de precisar de reparos, casarão mantém a beleza de 1926 |
Busto, bregas e falta de livros - Fora o desatino de um museu que ruiu antes de criado, outros absurdos marcam a história de Jorge Amado com a terra natal. Em 16 de agosto de 1993, durante visita do escritor ao distrito de Ferradas para o lançamento da pedra fundamental do espaço de memória, autoridades de Itabuna inauguraram um busto esculpido em bronze para homenageá-lo. No dia seguinte, a obra tinha desaparecido. Os jornais da época registraram o que foi considerado um insulto, justo na primeira vez que o escritor e sua cidade natal se reconciliavam, em meio a uma relação com cara de quase Complexo de Édipo (ler mais abaixo).Cerca de 24 horas depois do sumiço, o busto foi recolocado no seu lugar de origem. Grudado ao pedestal, um bilhete datilografado explicava o que se passou a partir do furto temporário da obra. Um grupo - que nunca foi claramente identificado, apesar de inúmeras teses sobre a autoria - resolveu levar a imagem de Jorge Amado aos novos “bregas” de Ferradas, já que em seus escritos sobre as moças de vida fácil não havia menções pormenorizadas sobre as casas de tolerância do distrito de Itabuna. “Eles diziam que só colocaram as putas para beijar Jorge, jogaram um pouco de bebida nele e, no fim, pediam desculpas”, relata o advogado e escritor ferrandense Gustavo Veloso, a partir de um artigo publicado pelo poeta Telmo Padilha.O busto foi retirado de lá e ninguém sabe seu destino ao certo. Foi trocado por uma égide (tipo de “moedão”). Para quem achou pouco o absurdo do desaparecimento da peça - apesar da pitada de literatura amadiana no périplo pelos prostíbulos -, o que dizer da ausência de livros do escritor nas bibliotecas de três escolas situadas no entorno do distrito. Isso, sim, parece mais surreal ainda.
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Imagem mostra visita do escritor ao espaço, em agosto de 1993 |
A luta de um amigo pelo reconhecimento - Há um nó atravessado na goela do escritor e poeta itabunense Cyro de Mattos, 72 anos, presidente da Fundação Itabuna de Cultura e Cidadania (Ficc). “Desde que assumi o órgão, há quase três anos, só penso em duas coisas: criar os museus da Cidade (em Itabuna), e de Jorge Amado (em Ferradas). Bato de porta em porta, peço ajuda, recursos, ando estressado. Como escritor, acho imperdoável ver aquela casa em ruínas”, disse, antes de ser alertado de que nem as ruínas existiam mais no lugar onde o romancista morou. Cyro afirma ter um projeto para alavancar o museu.“A ideia é transformar o espaço também em um centro de formação cultural, com oficinas e cursos. E tudo isso a um custo baixo, de R$ 600 mil. Mas a prefeitura e nem a Ficc têm recursos. É uma pena, justo quando vai se comemorar o seu centenário”, destaca. Sobre a casa, Cyro diz que não pode ser responsabilizado pelas administrações anteriores. Para ele, as dificuldades vêm da birra entre Itabuna e Jorge Amado.Segundo Cyro, há um ressentimento por que, quando a obra do romancista surgiu para o mundo, com seu forte teor social sobre as mazelas da região cacaueira, Itabuna acabou descrita como um tipo de “fiofó” do mundo, enquanto a arquirrival cidade vizinha, Ilhéus, era narrada com pena mais suave, embora também tivesse sobre ela a lente da denúncia. “Há ainda o fato de que muitos dizem que Jorge negava ser itabunense. Isso não é verdade. Ele deixou depoimentos falando sobre sua terra natal. A confusão vem do fato de que Ferradas já pertenceu a Ilhéus”, salienta.O ranço é tanto que, no novo século, tentaram mudar o nome da Avenida Cinquentenário, a mais importante de Itabuna, para Jorge Amado. A oposição foi tão forte que o projeto estancou. “Deu-se uma imensa discussão, com artigos publicados, até por intelectuais, repudiando a ideia, dizendo que ele não merecia”, destaca.Enquanto isso, sobram queixas, como a do designer Abdon Neto, dirigente de uma ONG para crianças pobres de Ferradas. “Não dá é pra ficar assim. Poderíamos mudar o destino daqui, aproveitar o potencial que gira em torno de Jorge Amado. Mas, os políticos parecem sem interesse”, reclama.
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O escritor Cyro de Mattos, presidente da Ficc, tenta criar museu |
Sobrado resiste como cartão-postal de Ilhéus - Apesar de precisar de reparos, o belo casarão onde o escritor Jorge Amado morou com os pais no Centro de Ilhéus, cidade turística do Sul baiano, é o contraponto e o alento de quem visita a região atraído pela prosa do escritor que melhor difundiu a região cacaueira no mundo. Mistura de estilos que transitam entre o colonial e o neoclássico, o sobrado alaranjado foi o local onde o romancista deu os primeiros passos na literatura. Começou a ser construída em 1920 e só foi finalizada seis anos depois. Com 19 anos, Jorge Amado escreveu, do seu quarto, O País do Carnaval, o primeiro de seus romances. O local abriga o museu Casa de Jorge Amado, visitado por gente do mundo inteiro, e vem passando por reformas para as comemorações do centenário. Outras duas casas do baiano no estado estão em Salvador. A do bairro do Rio vermelho, onde ele morou até a morte, ainda está fechada, mas a família trabalha para criar um espaço em memória do romancista. Já no Pelourinho, existe a Fundação Casa de Jorge Amado, onde ele nunca morou, mas que abriga grande parte do acervo do escritor. É lá que estão manuscritos, imagens raras e uma vasta coleção de obras de arte.