Por Fernanda Vareille*
Acabei de voltar de um mundo paralelo que é o Festival de Cannes, um dos mais importantes eventos culturais do mundo. Neste universo, o dia e a noite se misturam. As projeções começam bem cedo, e muitos agendam reuniões de trabalho durante a madrugada. Eu me dividia entre viver e viver os filmes – pois, sim, acho que o filme tem esse potencial em mim. Me permite viver, por duas ou três horas, uma realidade que se torna a minha por aquele momento.
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Acompanhada da minha amiga e produtora executiva Juliana Guedes, saíamos dos filmes e nos deparávamos com festas nas praias, com decorações psicodélicas. Um dia, por exemplo, saímos da projeção do filme de Francis Ford Coppola (“Megalópolis”) e fomos parar em uma festa patrocinada por uma marca em frente a uma praia, com balões brancos que remetiam ao céu de nuvens e espelhos cor de rosa. Eu me sentia como no livro "Alice no País das Maravilhas", onde fábulas e coisas fantásticas podem acontecer a qualquer momento. Basta nos permitirmos.
Assistimos filmes, aproveitamos a atmosfera da cidade, mas também fizemos negócios. Encontrei pessoalmente a distribuidora internacional do meu filme “A loucura entre nós”. Ela é americana, e faz seis meses que nos falávamos apenas por videoconferência. Ela é especialista em distribuir filmes de realizadoras mulheres. Sorte a minha de ter conhecido Efuru Flowers, e de ela ter se interessado pelo meu filme. Em breve espero que “A loucura entre nós” seja visto, também, pela comunidade internacional.
Quando eu estava no stand de Efuru, apareceu uma menina jovem, ela estava com o panfleto do filme dela. Sem hesitar, ela perguntou: “Você produz filmes, posso te apresentar aos meus projetos?”. É assim que as coisas acontecem. A sorte ajuda, mas a persistência é essencial.
Fui apresentada a muitos brasileiros, alguns que já conhecia de nome, através da troca de e-mails. Como o crítico de cinema Pablo Villaça, ele me disse uma frase que me marcou: “O problema de vir em Cannes é que você quer vir todos os anos”.
Existem diferentes perfis de pessoas que frequentam o festival. Pablo, por exemplo, entra em uma imersão cinematográfica e vê filmes do amanhecer ao anoitecer. Com muita sorte, consegui que ele trocasse um sanduíche entre as sessões e se dedicasse a um papo comigo. Coisas de Cannes…
A Bahia em Cannes
A Bahia também estava representada por Viviane Ferreira e Camilla Prado, que divulgavam o seu projeto de residência artística: Instituto Audiovisual Mulheres de Odun. Este projeto tem como propósito contribuir com a democratização do acesso aos bens culturais atentos e relacionados às equidades de gênero e de raça.
Saí de lá com a sensação de que todos podem encontrar o seu lugar em Cannes. A jovem estreante, que apresenta o filme no Short Film Corner – um lugar dedicado ao encontro de jovens cineastas que, normalmente, estão em Cannes pela primeira vez – também encontra o seu lugar. Algumas celebridades famosas dão pinta no tapete vermelho, tiram fotos para as marcas famosas, mas, algumas não assistem aos filmes.
Há espaço para amantes do cinema, pessoas que querem ser estrelas por um dia e andam com roupas altamente trabalhadas. Mas são pessoas que, no seu dia a dia, não são celebridades e nem trabalham com artes. Estão ali para se divertir, para viver um sonho, serem admiradas e fotografadas. Eu mesma tirei muitas fotos delas.
Cannes é um lugar onde as pessoas são ávidas por realizar, colocar sonhos em prática, movidas pelo desejo de fazer cinema e realizar negócios em torno dessa indústria. Sem falar dos cinéfilos, que frequentam o festival para descobrir filmes que talvez não sejam exibidos em outros lugares. Cannes contagia, e eu ainda estou contagiada por essa magia que, associada a um trabalho duro que pode levar anos a fio, nos deixa com a esperança de chegar lá. Mas que lugar é esse que queremos chegar? O lá é o presente.
Cerimônia de abertura foi marcada por mulheres fortes
Juliette Binoche emocionou, rendendo homenagem a Meryl Streep. Firmes, vibrantes, comoventes e cheios de humor. Atrizes, cineastas e a cantora Zaho de Sagazan uniram-se no palco para dar início às celebrações. Representando, com destaque e brilho, o cinema, sem esconder as dificuldades que às vezes enfrentam nos bastidores, elas amplificaram a voz das mulheres. Prestaram homenagem ao criar uma apresentação inteiramente feminina, iniciada pela mestre de cerimônias, a atriz Camille Cottin, a estrela principal da série da Netflix "Dez por cento”.
Cannes tem a competição oficial, mas também várias competições paralelas, como a Semana da Crítica, que foca exclusivamente em primeiras e segundas obras de diretores de todo o mundo, ajudando a revelar novos talentos. “Un Certain Regard” (“Um Certo Olhar”), que promove filmes com narrativas e estéticas distintas e ousadas, que oferecem uma perspectiva diferente do cinema mundial. A “Quinzaine des Réalisateurs” (Quinzena dos Realizadores) destaca obras de diretores de todo o mundo, visando descobertas e novas vozes no cinema.Eu optei por privilegiar os festivais paralelos, pois os filmes da competição oficial daqui a pouco estarão nas salas de cinema. Tive uma linda surpresa com o filme de “Ma vie ma gueule” (“The life of mine”) de Sophie Fillières, não sei qual vai ser o título em português. Conta a história de uma mulher que, aos 55 anos, está perdida ao encontrar o sentido da vida, após uma separação e a saída dos filhos de casa. A diretora faleceu logo após o final das filmagens, e os filhos dela concluíram o filme baseado nas orientações que ela deixou.
Me chamou a atenção alguns filmes realizados por homens, mas que colocam a mulher em uma situação de fragilidade, de vítima. Alguns bons, outros nem tanto. Gostei muito de "Julie Keeps Quiet". Mas me pergunto por que esses diretores não fazem filmes com as mulheres ocupando uma posição de força e poder. Só as mulheres realizam filmes assim?
Cannes me faz lembrar das minhas fabulações da minha adolescência. Quando morava em Salvador, na Bahia, não imaginava que pudesse viver tudo isso. Saí daqui para estudar cinema em Londres, em 2005. Sempre gostei da sétima arte. Não venho de uma família de artistas; ao contrário, venho de uma família onde gerações se dedicam ao mundo jurídico, um ambiente que pode ser bem normatizador.
Quando chegou a hora de escolher a minha profissão e prestar vestibular, eu não vislumbrava outra possibilidade que estudar Direito. Lembro bem de uma frase que meu pai: “Minha filha, faça Direito, pois você pode ser até advogada”. Essa frase, no fundo, me liberou do peso de estar aprisionada por essa profissão e de já ter um destino traçado.
Eu gostava de cinema, mas nem sabia disso. Eu era cinéfila, mas aprendi essa palavra bem mais tarde. Nos anos 90, eu frequentava a GPW, na Pituba, ou a Casa de Cinema, no Rio Vermelho, e buscava filmes com capas e nomes estranhos. Foi assim que conheci a obra de Luis Buñuel, "O Discreto Charme da Burguesia" e "Esse Obscuro Objeto do Desejo". Eram esses nomes e a capa das fitas de VHS com Catherine Deneuve e Carole Bouquet que me atraíam. Foi assim que comecei a engatinhar na habilidade de combinar crítica social, surrealismo, humor negro e psicanálise.
Estar em Cannes me fez relembrar de tudo isso. E se não der em nada as negociações que iniciei por lá, tudo isso serviu para me lembrar do amor que descobri, ainda jovem, pelo cinema. Cannes é a minha Holywood.
*Fernanda Vareille é cineasta baiana e diretora do documentário "A Loucura Entre Nós" (@fernandavareille)
Redação iBahia
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